Marcelo Frota | escritor
A prosa de Fernando Andrade em seu novo livro de contos A janela é uma transversalidade do corpo (Ed. Penalux, 2021) se caracteriza pelo movimento. A ação e os personagens estão em constante rumo a algum lugar ou até mesmo para lugar nenhum. Os contos retratam a urgência do nosso tempo, em que é preciso estar presente, ser visto, notado, destacar-se, mesmo que involuntariamente entre uma multidão que nada nos diz.
A lembrança que me vem a mente é de Sal Paradise, clássico alter-ego de Jack Kerouac em On the road, não em um personagem específico, mas em várias personas, sempre urgentes, sempre em algum rumo. Diferente de On the road, um romance longo, que toma um tempo considerável no desenvolvimento da ação e dos personagens, os contos de Fernando Andrade, em sua maioria curtos e precisos, nos trazem a mesma sensação de procura e deslocamento de Sal Paradise.
A movimentação e o deslocamento podem ser percebidos no conto que inicia a obra, A janela é uma transversalidade do corpo: “João ia de skate pela linha do acostamento junto com outras rodas que circulam no perpétuo moto-contínuo. Através das janelas dos circulares, Ana — um palíndromo — ia subjetivando corpos de transeuntes numa lógica de 1+1. Cada um que subia no circular era uma linha que se fechava numa rota motor ou numa lógica de salto-quadrante. O que seria uma forma de abolir as linhas que são feitas na caminhada, pelos passos”.
Outro destaque do novo livro de Fernando Andrade é seu apreço à linguagem, apreço este no nível de um Guimarães Rosa ou José Saramago, como visto neste trecho de A máquina – cabine de arroba: “Um dia uma lavadeira que ia dia sim dia não pegar roupa para quarar, reparou na barba sopesada. Mon-senhor fica mais bonito, liso. Ele matutou, sopesou os mais e menos. No dia seguinte não saía do quarto. A cozinheira foi bater à porta. Assim que entrou, viu a cena. A garganta degolada com um riso escancarado de ponta a ponta. Dizem as más línguas que foi linha de cerol que pegou na garganta do senhor”.
O conto Ana vai defecar amalgama necessidades fisiológicas com tesão sexual:“Era o momento de Ana defecar. Ela não queria paredes do banheiro a isolando. Pensou em um local, não conceitual, que não tivesse função. O local era a área de serviço. Ao mesmo tempo, o local de botar o lixo, secar as roupas no varal, espaço para a lavadora. E também era devassado porque tinha uma área aberta para os vizinhos. Ana queria evacuar na claridade da luz matinal”.
Ana sem pudores, é Ana de desejos, que após se lavar no box, deita na cama: “Estava quase dormindo quando sentiu uma comichão na entrada do ânus. Parecia um dedo alisando aquela região das pregas. Por um momento pensou que Paulo tivesse voltado e se escondido em algum canto do quarto. O dedo ia alisando as pregas e as paredes internas das nádegas. A ideia de relação estava descartada, pois ela estava só naquele quarto, mas o contato era tão nítido e real que ela achava que aquilo era quase uma preliminar para um coito”.
Ana vai defecar exala as necessidades do corpo: comer, beber, defecar, trepar. É o resumo do ser humano, que vive pelas necessidades do corpo, seja pelo o que faz funcionar (comer/defecar), ou pelo que lhe provem prazer (o coito/a masturbação, os vícios). É um recorte da condição humana, do que nos faz humanos.
A janela é a transversalidade do corpo é um livro que se faz necessário, seja pelas inquietações cotidianas que o mesmo retrata de forma brilhante, ou pelas análises do corpo que se move pelos desejos.
Bravo, Fernando Andrade. Bravo.
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