Fernando Andrade entrevista o escritor Daniel Brazil

Daniel Brazil Penalux - Fernando Andrade entrevista o escritor Daniel Brazil

 

 

 

 

FERNANDO ANDRADE: Você tira do Gênero conto muitas das suas possiblidades, concisão, ambiguidades, linguagem apurada. Deixa no seu leitor aquela impressão de o conto é grande, sempre foi, como elemento semiológico narrativo. Fale um pouco disso.

DANIEL BRAZIL: Embora o conto seja uma forma popular e universal de literatura, existe certo preconceito em relação ao seu tamanho. Há pessoas, pouco ilustradas ou muito pedantes, que supõem ser o romance uma forma superior de literatura. Costumo lembrá-las de que um gigante como Borges, por exemplo, nunca escreveu um romance.

Aliás, gosto de comparar literatura com outras artes. Um gênio influente como Norman McLaren só fez curtas-metragens na vida, e com eles praticamente esgotou todas as formas de experimentação do cinema de animação de sua época. Noel Rosa escreveu uma opereta, mas é por suas obras curtas que é aclamado.

Não é o número de páginas que qualifica uma obra. Meu livro de contos As Aparências, aliás, tem uma história curiosa. Escrevi um romance de 300 páginas, onde cada capítulo era intercalado por um conto. Foi uma longa elaboração para que a coisa parecesse orgânica, histórias dentro de uma história, um personagem escrevia e outro lia, comentava, criticava. Depois de matutar um bom tempo, joguei o romance fora e fiquei com os contos.
Cem páginas a menos, e tenho a impressão de que o livro não ficou menor. Toda a carga de significados e intenções, bem ou mal, está lá.

FERNANDO ANDRADE: O gênero dentro de uma certa classificação nos contos dão ao autor uma grande possibilidade de experimentar variadas sequências de temas e abordagens. Podemos falar tanto no espaço sideral, quanto num lugar dentro de terra. No seu livro existem uma infinita busca por estilos de contar e sequenciar uma história. Fale um pouco disso.

DANIEL BRAZIL: Tenho certa implicância com o chamado estilo. Digamos que um escritor produza dezenas de obras monótonas, escritas do mesmo jeito, no mesmo tom, sobre um repertório estreito de temas. Dizem que ele tem um “estilo”. Outro, espírito inquieto, mais anárquico talvez, inventa, subverte, muda de tom, pula da ficção científica para a fábula infantil, do sobrenatural para o humorístico. É considerado “sem estilo”. Estilo é um valor literário? Contrariando a fórmula, podemos considerar o segundo escritor muito mais saboroso que o anterior. Literatura é um campo inesgotável de experimentação, seja na prosa ou na poesia.

No meu caso, este volume é composto por contos escritos nos últimos vinte anos. Há uma natural diversidade temática e narrativa, que reflete interesses e questionamentos de cada época. Nenhum é do período pandemia Covid 19, que certamente deixará uma incômoda marca nos próximos escritos. Não parei de escrever, mas simplesmente não caberia no roteiro do frustrado romance. Pelo mesmo motivo, um conto de ficção científica premiado não foi incluído. A coletânea foi norteada por um projeto que não incluía necessariamente “o melhor de”, mas foi uma tentativa de driblar o tédio (estilo?) alternando vozes narrativas, personagens, locais e circunstâncias.

FERNANDO ANDRADE:  A literatura seria um jogo de montar o que já existem de tramas, e informações para com a questão do lúdico na ficção. Calvino o fez e Cortázar também. Você faz esta maquinação sobre o tempo que o jogo sempre trabalha sobre a literatura? As citações seriam um forma de atualização do jogo?

DANIEL BRAZIL: Citação é uma praga da qual tento me livrar. Um escritor iniciante cita para parecer culto, sabido. Um escritor maduro (ou um cineasta, um artista plástico, um dramaturgo, um coreógrafo, etc.) sabe que pode criar sem se apoiar em outros. Mas, ao mesmo tempo, percebe que certo tipo de público adora referências, se sente mais inteligente, dá aquele sorrisinho de “reconheci” quando topa com uma pedrinha identificável no meio do caminho.

A literatura adulta, de certa forma, é para iniciados. Há todo um cânone literário que nos antecede, e que não pode ser ignorado. Existe um tipo de literatura descartável, onde a mocinha, ou o mocinho, escreve como se estivesse num blog, falando de seus problemas pessoais. Não me refiro a isso, embora me preocupe a quantidade de títulos nas estantes das livrarias, físicas ou virtuais, que ocupam este nicho. Mas quando cito Homero, imagino que o meu interlocutor saiba quem é. Transito em outro território, um pouco diferente do comezinho, e que exige como passaporte certo amor pela literatura universal. Adoraria ter leitores clandestinos e ilegais, sem dúvida! Ainda pretendo escrever algo para o público jovem, mas é um desafio para o qual ainda não me sinto preparado.

Calvino e Cortázar são escritores que admiro muito, por terem consciência dessa arqueologia literária, e ao mesmo tempo serem leves e profundos. Brincam com as palavras, criam enredos fantásticos sem parecerem pretensiosos.

FERNANDO ANDRADE: O duplo não é apenas uma imagem de um ser duplicada fazendo o jogo especular. É também uma matéria da própria ficção quando tenta se aproximar do real, fazendo tanto sínteses como mimeses. As aparências enganam? Mas na ficção traçam suas travessuras sobre os temas da psicanálise, como fantasia, e ilusão.

DANIEL BRAZIL: As aparências sempre trazem algum engano dentro de si. Se o mundo e os seus personagens fossem transparentes, unívocos, se perderia boa parte da graça, do mistério das coisas.

Há um tipo de literatura que, de fato, pretende se aproximar da realidade com a maior fidelidade possível. Temos grandes autores realistas, mas também muito realismo que não acrescenta nada. Outra vertente é que trabalha com a invenção, com a fantasia. O escritor Edmar Monteiro Filho, no prefácio deste volume, observou que nos meus contos “os pares de opostos confundem-se na instabilidade das aparências. Natural, portanto, que o fantástico, este hábil transgressor da realidade, muitas vezes irrompa.”

É verdade, tento com certa frequência pular a cerca entre realismo e invenção. Não no sentido do realismo fantástico latino-americano de mestres como Marquez, Carpentier ou Borges, mas numa releitura de Calderón de La Barca (1600/1681): a vida é sonho, às vezes pesadelo. Se literatura é uma possível representação do mundo, não pode prescindir da imaginação criativa, principalmente em tempos cruéis. Mais que nunca, não podemos permitir que os sonhos sejam banidos de nossa vida.

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