FERNANDO ANDRADE: A fotografia eterniza um momento, uma cena. Você colocou a palavra no seu título, parece uma provocação com que vem depois… sobre mentira, falsificações da realidade. Fale dessa ironia.
SAMUEL MARINHO: Acho que essa poesia quer retratar o momento contemporâneo das verdades esfaceladas. O livro é construído todo em cima de paradoxos e contrapontos, que por vezes deram um nó na minha própria cabeça. Muitos poemas eu concluo sem saber o que eles querem dizer ao certo. Aliás esse é o meu critério pra ter um poema como “acabado” . O verso pra mim é esse mundo das possibilidades. Se eu sinto que já extraí tudo dos versos que acabei de escrever, se tenho esse domínio, é porque não me perdi como deveria na imensidão da poesia. Gosto dessa sensação de, ao final de ter escrito, o poema continuar ali, a me ler. Sobre a ironia, ela circunda um certo dilema do poeta entre ser moderno e ser eterno. Há uma provocação no livro inteiro sobre isso. O eu-lírico está entregue à hipermodernidade, ele fotografa os instantes, porque abdicou desde sempre daquela eternidade do sentido ingênuo de querer perpetuar uma obra no tempo, por isso ele não tem receio algum de usar termos que possam parecer datados, ou facilmente caírem em desuso como o “fake” gravado já no título desse livro. Esse poeta está aí tentando capturar a intensidade do momento, com a matéria-prima tecnológica que lhe bombardeia, disparando de volta uns flashes de eternidade momentânea.
FERNANDO ANDRADE: Teu livro parece transitar entre gêneros narrativos e poéticos, onde o binário é provocado porque até a *prosa morreu na Rússia, entre o que se fala ( a prosa) e o que se sente( a poesia). Esta relação amigável parece confrontar perfis onde os sentimentos como ódio são normais em certos lugares… Comente.
SAMUEL MARINHO: Há uma construção pensada de ritmo que perpassa o desenvolvimento desse livro de poemas. Como fã desde criança que sou da arte do carnaval , depois de muito tempo me percebi que elaboro os livros como os carnavalescos concebem seus desfiles. Não sei se existe carnaval na Rússia (rs), mas eu quando visto a fantasia da palavra , gosto de transitar nas possibilidades rítmicas em prol do andamento da história que está sendo contada, como se fossem alas, cenas – muito embora meus livros não sejam particionados em seções; o andamento e o enfeixe desenhados se encarregam da mudança de cenários, desenvolvendo temas transversais, mas atrelados a um conteúdo principal. Sempre achei comigo que essa poesia se potencializa na liga que é criada com esse movimento rítmico pensado. Por isso quase nunca posto poemas de forma isolada nas redes, penso de alguma maneira que eles sozinhos perdem em intensidade. Eu quando sinto a poesia não sei bem o formato que vai se concretizar no papel, sei que ouço uma voz me dizendo pra trilhar um caminho que me ajude a chegar ao completo desconhecido pra mim mesmo, mas que depois de tudo eu consiga reconhecer o mundo ao meu redor. No final, não me importo muito com as distinções formais sobre os canais que a poesia pode se expressar. Estudo sim as possibilidades de multiplicar as formas, diversificá-las, mas também não me apego a nenhuma delas , tento me reinventar a cada página e transitar por outros caminhos o tempo inteiro. Estou descobrindo ainda meu lugar na folha em branco.
FERNANDO ANDRADE: A tecnologia é um suporte que você usa como uma frequência estética para nos dizer dos paroxismos da superexposição, da super excitação. E seus achados poéticos são sempre muito certeiros quanto ao assunto. Fale um pouco sobre isso.
SAMUEL MARINHO: Eu comecei a escrever os meus primeiros versos numa mesma época em que comecei a estudar pra ser técnico em programação de informática numa escola técnica em São Luís-MA, lá pelo final da década de 90. Os algoritmos, portanto, há muito tempo povoam minha mente e uma coisa deve ter influenciado de alguma forma na outra. Aos 21 anos eu terminei uma leva de poemas que foi lançado virtualmente em formato de e-book, o “Pequenos Poemas Sobre Grandes Amores” (2001) que, anos mais tarde, caiu nos olhos de um amigo poeta e ensaísta, o Ricardo Leão, que escreveu um artigo generoso sobre esses versos. O primeiro poema que considerei acabado na minha produção era um diálogo com a clássica Canção do Exílio, o qual intitulei de “Canção Tecno para G. Dias”. Ali estava expresso o léxico tecnológico (termos como site e gigabyte se combinavam em rima) , mas também uma preocupação social com a questão da inclusão digital. Esse primeiro poema, portanto já trazia o cerne dessa poesia que entrelaçava conteúdo e forma. Depois de mais de uma década, fui incentivado pelo mesmo Ricardo, a quem , curiosamente, nunca conheci pessoalmente, a apresentar algum material para publicação pela Editora Penalux, convite que relutei durante um tempo. Eu pensava que essa poesia não teria vez, porque usava de forma muito aberta, sem filtros, termos do cotidiano tecnológico, das redes sociais. Pensei durante anos que havia de me lapidar pra de alguma forma camuflar essa expressão mais direta. Mas essa dicção então se apresentou determinante e inevitável no meu primeiro livro impresso “Poemas In Outdoors” (2018), que é um apanhado da produção que havia ficado esquecida entre 2002 e 2011. Ao ter contato com aqueles escritos novamente e publicá-los, voltei a escrever e em 2019 já tinha material suficiente para o que seria o meu segundo livro impresso, o “Poemas de Última Geração” e mais uma vez estava lá, em praticamente todo o livro, esse léxico tecnológico que durante algum tempo eu achava que seria um caminho torto, um desvio de percurso, mas que depois descobri que não consegueria fugir dessa que era minha voz natural. Hoje, penso que essa aceitação me levou então a extrair poesia do que seria improvável e a brincar com as possibilidades poéticas de expressões como inteligência artificial, telas deslizantes, selfies, fake news, celulares, metaverso, dentre outras. E, como pano de fundo desse léxico que se mostra, a temática dessa poesia é carregada semanticamente de terabytes de inquietação. Há um sentimento de reflexão muito forte sobre as relações contemporâneas que se dão sob o impacto de toda essa tecnologia, sobre o estar num mundo em que a noção de tempo e espaço é completamente redimensionada pela velocidade da informação.
FERNANDO ANDRADE: A relação com a imagem é um processo, às vezes, um tanto narcísico. Mas a poética é uma uma relação imagética, porém, lida com o pensamento, as percepções sensoriais, muito distante dos meios da mídia. O que difere uma da outra? Isso porque na TV podemos ver uma distorção sobre a imagem, talvez através de uma peça publicitária ruim. E no poema?
SAMUEL MARINHO: No livro “Fotografias para perfis fakes”, a imagem está presente como tema principal, em uma perspectiva crítica sobre a importância excessiva que ela ganhou com a massificação da self media. No livro anterior, esse eu-lírico já prenunciava ironicamente que o “O que a vida quer da gente é imagem”. As fotografias são os versos, as legendas, por vezes longas, que quase ninguém vai ter paciência pra ler. Mas, por sorte, quem deslizar por um segundo, quem se permitir a uma pausa pra reflexão, pode ser conduzido a imagens norteadoras de um reencantamento com o mundo, poesia real. Quanto ao poema, esse objeto multifacetado que acaba por solidificar uma verdade momentânea em cada um, o foco do que pode ser verdadeiro ou falso está nos olhos de quem sente os versos: “Para saber o que se quer do poema / precisa-se vencer o maior impasse / encarar os olhos ds mentira / desvendar a sua verdadeira face”.
Caso do leitor de prosa que foi esfaqueado, e morreu, por um leitor de poesia, na Rússia.
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