Entrevista + resenha: Heleno Álvares e o seu Labirinto Poético, por Rafael Nolli

Uma resenha seguida de um bate-papo.
Por Rafael Nolli

 

Não me lembro exatamente de quando ou como conheci Heleno Álvares. Moramos na mesma cidade e desde sempre o avistei passando pelos bares, com um pacote de livros debaixo dos braços. De mesa em mesa, oferecendo os seus versos e trocando um ou dois dedos de prosa, o poeta seguia fazendo o seu itinerário: vender poesia! Eu era um aspirante a poeta e tinha comigo um exemplar do seu primeiro livro, Desordem Contemporânea, que lia sempre. Era uma das poucas obras de poesia contemporânea que tinha acesso, já que na escola, quando muito, chegávamos aos concretistas. Nesse livro, encontramos poemas concisos e precisos, que são uma constante na obre do poeta. Por exemplo, com quatro palavras apenas – um micropoema – Heleno acaba, de certa forma, resumindo o seu itinerário poético:

Vendo
Palavras
Lucro
Sentidos

Ainda em Desordem Contemporânea, destaco mais um poema, dessa vez pela ironia e certo tom pessimista, que se repete em outros versos desse livro.

(“PRO ESPAÇO”)

Não quero saber de mais nada
já que nada me interessa
quero essa vida apressada
pra ver se outra recomeça.
Quero uma frieza racional
neste mundo de paz e guerra
pra depois, no espaço sideral
fazer um gol, chutando a Terra!

Não me lembro exatamente de quando ou como conheci o poeta Heleno Álvares. Sei que mais tarde iríamos nos aproximar, como sempre ocorre com poetas que dividem o mesmo espaço e estão fazendo o seu corre. A partir de então, a poesia seria a principal razão de nos encontrarmos seja na Biblioteca Municipal, seja em nossas casas, ou nos saraus que ele organiza amiúde.
Nesses anos de convivência, vi Heleno lançar diversos livros, sempre mantendo a sua dicção própria e conquistando novos olhares. Em O Escambau, publicado em 2010, encontramos vários poemas que, a meu ver, estão entre os melhores produzidos por ele. Seja no verso curto e certeiro, seja no poema de maior fôlego, vemos um autor maduro, consciente de seu fazer poético. Um dos meus preferidos dessa lavra é o terceto que reproduzo abaixo, que tem apelo forte e merece ser estampado em uma camiseta ou pregado pelos postes das cidades.

Meu destino é um insulto:
queria ser feliz
ele só me fez Adulto

 

Ainda em O Escambau, gostaria de destacar o Poética dos Afogados, onde a metalinguagem dá o tom (e há muitas metalinguagens em toda a sua obra):

Poesia
esse mar sem margens
por onde navegamos
com marés de linguagens
em que sempre remamos
rimamos livres
soltos
aos meandros
das poéticas viagens
bons malandros
viajamos
e não pagamos passagens

Com uma longa experiência no jornalismo cultural, entrevistou grandes nomes da literatura e da música, além de diversas personalidades e anônimos. Heleno também caminha com facilidade entre o meio musical: isso reflete diretamente nos eventos organizados por ele, onde não só agrega poetas, mas também muitos músicos e gente do teatro. Em seus saraus, não só se lê poemas em um microfone, mas se faz isso intercalado a muita música e todo tipo de manifestação artística.
No campo da música, Heleno tem uma série de bons parceiros, alguns grandes, reconhecidos nacionalmente. Sua poesia, de influência ampla, abarca muito da vertente dos grandes letristas. Essa poesia musical, muito sonora, pode ser explicada de uma forma simples, a partir de uma história – verídica – que certa vez ele me contou. Resumo, assim:
Um músico da cidade, por um motivo que desconheço, encontrou uma folha com um poema do Heleno em uma lata de lixo, ou na rua, não sei ao certo. Muito intrigado com aqueles versos, que não apresentavam autoria, o músico o transformou em uma canção. Como se vê, a musicalidade de seus poemas salta aos olhos. O caminho dessa música, de volta ao poeta, também é uma história à parte – que não irei contar aqui, mas que nos basta como exemplo da capacidade de jogar com as palavras. “Jogar” nem é um bom termo, aliás. Certa vez, Edilson Palhares, professor de artes e grande conhecedor do mundo cultural, disse: “Heleno é um bolinador das palavras”; ou, “Heleno é um bulinador das palavras”? Um dos dois termos ele usou, não sei ao certo qual, mas ambos são bons como exemplo!
Essa facilidade em lidar com as palavras, criando versos com muita musicalidade, pode ser vista em Estrela e Raiz (do livro O Escambau). Esse poema em particular se apoia em rimas até certo ponto tradicionais (A, C, B, D) diferenciando-se dos trabalhos com rimas internas e esporádicas, que prezam pelas aliterações e as (des)construções típicas dos concretistas – que são a maioria em sua obra. Essa peça, que apresento a seguir na íntegra, nos serve como modelo de como a obra de Heleno Álvares abarca uma grande gama de expressões, sendo rica em formas e modelos:

Estrela e Raiz
(Em nome do meu pai Elmo Alves Dom Bosco)

Levei a vida como pude;
A vida me levou como quis.
Hoje, atingi a Plenitude:
sou pó estrela fruto e raiz.

Flutuo nesse espaço suave
a brincar de eternidade;
meu pé é a asa de uma ave
a romper toda a gravidade.

Com quem guarda na memória
saudoso, crio convivência.
Minha vida está na história
onde o amor fez-se em sua essência.

Como disse, moramos na mesma cidade, e hoje somos amigos, mas é pelos meios virtuais, que envio essa série de perguntas que o poeta me devolve pelos caminhos do in box do facebook.

Rafael Nolli: Os números não mentem: o brasileiro não lê. Estamos na retaguarda nesse quesito. Se formos pensar em estilos, podemos dizer que dentre os livros consumidos no Brasil, a poesia encontra-se mais a margem ainda do consumo – como nos mostra as tiragens reduzidas que os livros de poemas ganham e as poucas editoras que arriscam a publicá-los.

No entanto, você tem conseguido se destacar de forma muito promissora nessa área: os números impressionam, hoje você sobrevive unicamente da venda de seu mais recente livro, “Labirintos”, oferecendo-o nos bares e escolas. Cada edição deste livro teve a tiragem de 500 exemplares, sendo que em 1 ano e 4 meses, você vendeu 1400 exemplares! Assim te pergunto:

Poesia não vende?

Heleno Álvares: Realmente, o que menos vende é a poesia. Apesar de sempre ouvir alguém contando que já escreveu alguns versos no seu “tempo de juventude”. Brasileiro tem pouco o hábito de leitura.
R. N. É possível viver de poesia no Brasil ou isso é um sonho romântico inalcançável?

H. A. Tenho conseguido sobreviver de poesia. O que não é fácil, em se tratando de Brasil. Prefiro a forma independente para imprimir/divulgar/vender o livro, pois, você está no tête a tête com o leitor. Deixar na livraria é bom como divulgação, mas, o percentual sobre o preço de capa é muito alto, 30, 40%. O que não é muito atrativo. Consigo vender porque estou diante do leitor, que compra e, na maioria das vezes, não chega a ler. Ele compra pra “ajudar”, pra dar de presente, mas nem sempre lê.

R. N. A letra de música é um caminho natural para o poeta? Digo isso, pois há uma vertente de pesquisadores que apontam ambas como coisas distintas, quase sempre colocando a letra de música como algo menor. A questão é: são mesmo coisas distintas que exigem formas diferentes de pensar/criar/produzir?

H. A. Sim, são distintas as formas de se escrever letra de música e poesia. No entanto, a poesia em sua melopeia desenvolve o seu lado musical e, no caso da letra de música, encontra-se muitos bons poetas que não ficam atrás dos chamados poetas literários. Não considero de formal alguma que a letra seja inferior ao poema. São formas distintas, e até complementares, de manifestação poética

R. N. A poesia contemporânea, a mais atual e recente, praticamente não encontra espaço no ambiente escolar, tampouco está na mídia. Alguma luz no fim desse túnel? Ou melhor, como levar a poesia atual para mais próximo dos jovens leitores?

H. A. Penso que uma boa opção para se levar a poesia, a prosa, para o público mais jovem sejam os festivais literários, que promovem concursos de redação e, com isso, acaba por incentivar a leitura. O brasileiro que tem pouco o hábito de ler passa a ter uma boa influência por parte desses festivais. A outra opção é a literatura infantil/infanto-juvenil, que tem total condição em levar este jovem público a um futuro literário, onde a cultura é sua verdadeira essência.

R. N. Em 2017 dividimos uma mesa no FLIARAXÁ, onde mediei um bate papo entre você e a poeta Líria Porto. A impressão da plateia foi a melhor possível. O que você tem a me dizer sobre esses festivais literários? Por exemplo, são mesmo “literários” no sentido mais específico da palavra?

H. A. Os festivais são muito importantes para o incentivo à literatura, como mencionei na resposta anterior. No entanto, festivais não são somente literários. Aqui temos o Fliaraxá, que tem cedido espaço ao festival de gastronomia. Não acho que este seja o caminho. São propostas muito distintas, públicos muito distintos. O Fliaraxá deve ser mais literário, como o foi até a penúltima e 5ª edição. Gosto muito deste evento, onde já participei algumas vezes, com você inclusive, participando de debates e oficinas. É muito bom. Penso também que devemos tecer críticas, não no sentido de “falar mal”, mas no sentido de apontar caminhos dentro de uma visão pessoal, a respeito deste tão importante evento.

R. N. Você fez diversas entrevistas ao longo de sua vida. Uma em especial me chama muito a atenção. Como foi entrevistar Campos de Carvalho?

H. A. Esta foi pra mim a mais importante entrevista que fiz. Sempre admirei a bela obra deste escritor tão genial escritor, que é o Campos de Carvalho. Interessante é que ele, que é um extraordinário prosador surrealista, foi o autor que mais me influenciou na poesia. Gosto, desde muito tempo, do surrealismo. Então comecei a pesquisar os “pais do surrealismo brasileiro”. Encontrei nessa pesquisa Campos de Carvalho, com seu “A Lua Vem da Ásia”. Daí em diante, não parei mais de curtir sua obra.

R. N. Esse autor, considerado por muitos como um dos revolucionários da linguagem, ainda é muito pouco lido e quase nunca mencionado. Por que há tanto silêncio em torno da obra de Campos de Carvalho?

H. A. É difícil entender o motivo (se há) pelo não reconhecimento sobre sua literatura. A entrevista que fiz com ele foi, de certa forma, também surrealista. Afinal, ele responde algumas vezes de um jeito aparentemente desconexo a pergunta. Mas, gostei demais dessa maneira dele responder. É como se a entrevista fosse um exemplo de “surrealismo jornalístico”, rsrsrs. Tenho uma página em sua homenagem no facebook para divulgar sua importância literária. Campos de Carvalho (seu primeiro nome é Walter) é um gênio da literatura.

R. N. Recentemente, você vem escrevendo uma série de contos que serão em breve reunidos e publicados em livro. Qual é a diferença fundamental entre o processo criativo na escrita de contos e poemas?

H. A. Sobre o processo criativo do conto e do poema, penso que a diferença vem do tipo de concisão que se deve ter. A concisão do poema é mais em relação à forma do que ao conteúdo; já no conto, penso, a concisão é mais relativa ao conteúdo do que à forma. Gosto de produzir nas duas vertentes literárias. Espero poder lançar este que é meu livro de contos ainda no primeiro semestre.

R. N. Nesses momentos de turbulência política, muito se discute o papel do intelectual, do artista, diante da convulsão que o país está mergulhado. O poeta deve se engajar nessas causas? O que ele perde/ganha nesse processo?
H. A. O poeta, o escritor, o intelectual devem sempre se posicionar no campo político porque ninguém vive isolado. Alguém já me falou que gosta muito do que escrevo, mas, não deveria ficar me expondo no sentido ideológico, porque isso poderia desagradar algum leitor, que por isso, não compraria o meu livro. Disse que não posso me separar. É impossível. Sou apenas um e não sou divisível. O poeta retrata o cidadão. A ideologia está no meu modo de escrever, de pensar, está em minha poesia. Não acho, no entanto, que se deve ser panfletário na forma da escrita. Temos grandes exemplos de criações poéticas muito boas, mas, sem cair no panfleto e, ao mesmo tempo, tecer crítica/protesto sobre certos momentos da vida social. O intelectual deve se posicionar. Ninguém deve ser um “analfabeto político”.
R. N. Para encerrarmos essa conversa, gostaria que você escolhesse um poema que você acha significativo.
H. A.

Considerações
e O Escambau…

Obrigado aos Mestres, que são sempre escritores e cineastas
e artistas plásticos e compositores
e músicos e donos de botecos
e jogadores de sinuca e humoristas
e clowns gozadores e psicanalistas
e neuropsiquiatras e loucos e lúcidos
atores duma dramaturgia onde
todos pagam pra atuar, atuam pra
pagar, ficando apenas aos diretores
desta peça o monopólio da farta
bilheteria; aos espectadores, a falta
de alegria, do pão, e neste circo:
a globalização da miséria,
o globo da morte.
A estes Quixotes amigos,
virtualmente verdadeiros, pobres em
dinheiro, ricos em mundos
inventados, que nenhum zilionário
pode querer comprar, procuro
retribuir um pouco de poesia,
invertendo a violência,
deixando morto o tumor
na manifestação da praça,
num tumulto de humor,
esta que é nossa mais poderosa
arma-alma.
A todos agradeço por tudo que
sempre fizeram para que eu não
me entendesse, porém me aceitasse
com o objetivo de continuar
me mudando, sem mudez,
me contradizendo,
para que, assim, jamais perdesse
a mania em manter-me
na (Des)Coerência Humana.

págs. 08-09/”O Escambau”

 

 

 

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Heleno Álvares nasceu em Araxá (MG) no ano de 1960. Tem quatro livros de poemas publicados (Todos de modo ”independente”): Desordem Contemporânea – três edições: 1998, 2000 e 2002; Observatório Insólito (2004), 0 Escambau – duas edições no ano de 2010 e Labirinto – três edições, duas em 2016 e uma em 2017.

 

 

RAFAEL NOLLI 150x150 - Entrevista + resenha:  Heleno Álvares e o seu Labirinto Poético, por Rafael Nolli

L. Rafael Nolli nasceu na cidade de Araxá, Minas Gerais, no ano de 1980. Publicou Memórias à Beira de um Estopim (2005, JAR Editora), Elefante (2013, Coletivo Anfisbena), Gertrude Sabe Tudo (2016, Gulliver) e Ao Pé da Letra (Independente, 2017).

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This Article Has 2 Comments
  1. ANGELICA VIZCARRA Reply

    A obra de Heleno Álvares se estende madura em nossa atualidade, traduzindo um existencialismo contundente e profundo, porém leve em sua forma, que brinca com a língua portuguesa e se manifesta numa expressão sensível e cortante. Seus poemas incitam, provocam e levam o leitor a seu próprio universo interno onde emoção e razão se complementam numa dança onírica. Seus versos nos mostram o quão enganados estamos em nossa leitura superficial dos eventos e movimentos humanos. Deve ser lido e relido, indico como livro de cabeceira!

  2. Idelma Borges Costa Reply

    Levar um pouco da história e do ponto de vista do poeta sobre alguns temas ao leitor enriquece ainda mais sua obra literária, tornado possível a aproximação entre ambos, consolidando a admiração e o respeito pelo escritor. Parabéns Rafael Nolli e Heleno Álvares.

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