https://www.editorapatua.com.br/paniricocronicas
FERNANDO ANDRADE-) O senso de observação que a crônica dá, cria nos seus textos potencialidades de abrir a realidade para nuances e camadas. O sonhos seriam esta interface para tal caminho?
CAIO GARRIDO-) No livro, cada crônica parte de um sonho. Um sonho pode fazer essa abertura sim, de nuances, camadas, e novas estradas por entre aquilo que conhecemos como realidade. Os sonhos abrem sentidos para aquilo que é vivido na realidade diurna, realidade que, muitas vezes, só acaba ganhado simbolização depois do sonhar. Então, no livro, cada sonho faz uma primeira abertura, e a crônica acompanha esse movimento de abertura, de fendas, acessos, e caminhos. O sonho inaugura o processo, e a crônica dá continuidade ao trabalho de mergulho nas profundezas do inconsciente e da realidade de vigília, extraindo de lá elementos para voltar à superfície por novas sendas e apontando conexões inesperadas entre esses vários elementos, que estão presentes simultaneamente no conteúdo onírico e na realidade psíquica do sonhante.
FERNANDO ANDRADE-) Você de certa forma se expõe como uma persona\personagem que tanto materializa carne como alma. Como foi esta autoanálise em questão no livro?
CAIO GARRIDO-) Não tem como não se expor escrevendo um livro como este, com esse tipo de proposta. No fim das contas, trata-se de uma autoanálise. Mas que no caso, objetiva ir em direção àquilo que tem em comum com o mundo social, isto é, o livro busca na prática demonstrar a tese de que o sonhar, como um desses elementares fundamentos da vida, é um fenômeno que ultrapassa a individualidade de um sujeito que sonha. E que embora tenhamos uma mente individual, que parece ser uma unidade, mais do que atravessados pelo outro, somos formados instante a instante por um caleidoscópio de forças, imagens, histórias e representações que vêm realmente de outros. Freud dizia que a psicologia do indivíduo não pode desvencilhar-se da do grupo. Segundo ele, “o que separamos como psicologia individual humana, desconsiderando todos os traços do grupo, só veio a ter proeminência a partir da antiga psicologia de grupo, por um processo que talvez ainda possa ser descrito como incompleto”. Dado isso, a articulação entre questões sociais e o sonho foi uma das condições que me impus para a escrita do livro. Cuja consequência recaiu sobre a escolha dos sonhos que iriam entrar no livro, isto é, entraram nele os que claramente traziam associações com questões candentes do tempo em que vivemos, com seus conflitos e tragédias, como a pandemia e a péssima gestão governamental, assim como questões que envolvem e determinam nossa história como país, como o racismo, a opressão social de classes, assim como outras questões. Para realizar tal empreitada, como você percebeu, exponho parte de mim no texto, mas sempre trabalhando com uma persona literária, que de alguma forma se associa ao que é o trabalho comum da crônica e do cronista, que é o de fazer uso, por exemplo, de recursos como o da autoficção. Em resumo, o que está lá nos sonhos relatados no livro, aconteceu realmente, foi sonhado daquela forma que ali está, sem invenção ou ficção. Já quando adentramos à crônica, logicamente, os limites entre narrativa autoficcional e literalidade na realidade ficam borrados.
FERNANDO ANDRADE -) A pauta antirracista é desenvolvida por você com muita potência. Como ela se sedimentou na suas crônicas tornando os textos tão orgânicos e intensos?
CAIO GARRIDO-) Acho que isso só pôde acontecer porque tentei ser o mais honesto naquilo que eu contava.
Os sonhos me colocam numa posição difícil ao ter que contá-los em livro, me revelando e problematizando o que é buscar ter uma postura antirracista (por exemplo), com as contradições, limitações, e faixas de ignorância que estão em mim. Logicamente que contei com pessoas ao meu lado, que de alguma forma estruturaram minha capacidade para pensar tais questões, às quais sou extremamente grato. E é aí que entra a dificuldade do processo de autoanálise e da exposição disso ao público potencialmente leitor. Pois, o processo de fazer essa autoanálise é em direção ao outro, e não uma coisa umbiguista, sempre buscando dinamizar na análise e na escrita uma boa dose de autocrítica, concomitante ao reconhecimento do outro que me atravessa e me compõe, fazendo com que a energia final liberada do processo seja a da busca da verdade, e de ampliação do espaço crítico e de discussão pública sobre temas importantes.
FERNANDO ANDRADE: A necropolitica é um tema que absorve suas narrativas misturando-se aos sonhos de forma densa e palpável. Que tipo de tensão te causou ao afundar em águas tão turbulentas como o que vivemos nestes dois anos?
CAIO GARRIDO-) Eu, como tantas outras pessoas nesse país desgovernado, ainda em estado de colônia de exploração, ficamos extremamente vulneráveis diante de um governo inescrupulosamente gerador de morte e destruição. Tentei fazer com que minha raiva, sempre presente em relação ao chefe da gangue deste atual mandato federal brasileiro, se tornasse uma força produtiva, para tirar algum tipo de mínimo ouro possível dos objetos repugnantes que o governo vai depositando sobre os seus cidadãos. Que é o que ocorre, por exemplo, em um dos sonhos no livro, o “sonho com objetos repugnantes”. A tensão que a turbulência ainda gera em todos nós é incomensurável. Os efeitos são tantos que não caberiam aqui nessa entrevista. Decerto que a tensão produzida por esse governo foi muito maior do que a necessidade de se aprofundar nisso para poder escrever algo que possamos atribuir agregação de sentidos novos para todos nós.
Be the first to comment