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FERNANDO ANDRADE: Teu livro me fez sentir a ideia de um relato que a poesia atravessa certo cotidiano seu, feito de uma acuidade intimista sobre suas idiossincrasias, seu jeito de ser. Mas ele não é o relato em si, pois, você tem uma potência em transformar palavras em metáforas, imagens sensoriais, em estética visual. Queria que você me falasse disso, se você concorda ou não?
PRISCILA BRANCO: Acredito que todo processo poético passa, de certa forma, pelas experiências de quem escreve. Essa coisa de poesia etérea, distante do mundo, “universal” (seja lá o que isso queira dizer) já ficou no passado. A produção poética contemporânea brasileira está vivíssima, respira ares novos, conversa com o leitor. Penso que ler a poesia de alguém é invadir seu íntimo e conhecer facetas que nem mesmo o poeta desconfia que existe. Ao mesmo tempo que alguns elementos da poesia partem do cotidiano, de uma consciência sobre a vida e a palavra poética, outros nascem do inconsciente e guardam segredos profundos. Cabe ao leitor (e ao poeta também) encostar o dedo nessa escuridão latente.
Então, sim, minha poética atravessa meu cotidiano, as experiências e descobertas de um estar e ser no mundo. Mas, ainda assim, é uma poética: então não é um real, é um atravessamento, uma transformação. Consigo (ou espero) recolher a experiência vivida e alquimizar em imagens poéticas, ritmos e cortes. Daí quando vou ler aquilo que criei
nem parece que saiu de mim, às vezes me pergunto: isso fui eu que escrevi? Estou muito ali, mas já sou outra. O barato de encostar os dedos na poesia é isso mesmo, essa dúvida, essa busca por algo sempre inalcançável, como se estivéssemos correndo em círculos e de repente não sabemos mais quem persegue quem: eu corro atrás do poema ou ele corre atrás de mim?
Também tem o outro lado, o dos sussurros ao pé do ouvido: estou tomando banho, e me vem um poema inteiro na cabeça; é preciso sair correndo do chuveiro, sentar e escrever. Obedeço. Mas esse poema partiu de onde? Da minha vida? Do inconsciente? De outra dimensão? Não sei.
FERNANDO ANDRADE: É muito interessante a sua predileção por cafés que se associa muito ao prazer literário. O café no seu livro não é apenas uma imagem sobre consumo, degustação, ele vira um componente importante ao entrar em certa maneira de ver o entorno, as pessoas, no café somos exímios observadores. Fale um pouco disso. O que o café traz para poética?
PRISCILA BRANCO: O café tem a potência de abrir muitas portas interpretativas. Primeiramente, enxergo o ato de beber café como um ritual muito brasileiro. Quando eu era criança, observava minha vó, quando ela ia visitar, sentar-se à mesinha da cozinha para tomar seu café com pão. Passei a querer tomar também. Na verdade, queria participar desse momento mágico e diário com minha vozinha.
Também minha mãe tem seu ritual. Todo dia, o café. De manhã e à tarde (acredito que também à noite, no passado). Então, esse momento do café foi passando para mim através da geração de mulheres da minha família. Mas não é só um ritual familiar, é ainda mais coletivo – em qualquer esquina do Brasil há pessoas tomando seu café (que, agora, assim como o cigarro (que, felizmente, não me acompanha mais), tomar café pode se tornar uma experiência de conversa, de observar o tempo, de escrita. É como parar e respirar, meditar, mesmo quando estamos com pressa para ir trabalhar e tomamos o café como potencializador de energia. Ele me acompanhou em momentos muito importantes da vida, e com a poesia não foi diferente.
O café é muito real, sólido e brasileiro. Misturar o açúcar, então, nesse líquido forte, é uma explosão de imagens, de memórias e de possibilidades. Pra mim, não há vida sem café (coitadinho do meu estômago).
FERNANDO ANDRADE: Qual é sua autoimagem como uma poeta\escritora? Há certa negação de seu eu lírico em atuar no corpo e campo da poesia. Como a escrita atua nos seus sentidos e corpo físico? ‘O corpo escreve’?
PRISCILA BRANCO: Olha, escrevo desde criança, e de tudo um pouco: poesia, contos, crônicas, romances inacabados. Mas esse tal de reconhecer-se como escritora (e, mais ainda, como poeta) demorou pra acontecer. Acho que é uma inquietação de muitas mulheres brasileiras. Demoramos pra afirmar que somos escritoras, demoramos mais ainda pra lançarmos livros. Não é falta de coragem, não, é um modelo de sociedade de séculos que coloca a mulher em segundo planos. Ainda bem que as coisas são mutáveis, e há muita luta no passado e no presente.
Sobre esse “campo da poesia” ou “espaço poético”, é uma relação complicada.
Acredito que, pra participar da roda, é preciso dançar. E aí que não tenho muito saco pra formação de “grupinhos” de poesia, pra uma galera nariz em pé. Sabe aquele verso de música do Erasmo Carlos, “gente certa é gente aberta”? Então, eu gosto de gente aberta, gente que abraça, de explodir círculos. Fico muito feliz pelas conexões que tenho feito com tanta gente legal, através da minha atuação como editora da revista toró e da Macabéa Edições. Há pouco tempo, surgiu a Rede Afetiva de Culturas, uma tentativa de unir uma galera que tem atuado nas revistas e editoras independentes. É isso, eu gosto de criar afetos. Os desafetos que saiam pra lá.
Já sobre a questão corporal, tem um trecho de um ensaio do Paul Valéry que diz algo assim: a prosa é como uma corrida, você deseja chegar em algum lugar; a poesia é como uma dança, o próprio movimento é o fim dele mesmo (mais ou menos assim, somado à minha própria leitura interpretativa). Pra mim, é impossível escrever poesia sem sentir, cheirar, ouvir o poema. Tudo é motivo de escrita. O cheiro do café, o barulho da chaleira. O corpo escreve, e nós somo um corpo que está sempre dançando.
FERNANDO ANDRADE: Teu livro tem um efeito de sublimação quanto a dor, as emoções fortes. Não digo que ele funciona com efeito terapêutico. Mas há muito olhar de tantas camadas internas a serem vistas e entendidas. Fale disso.
PRISCILA BRANCO: Minha psicóloga leu meu livro, açúcar, e diz exatamente isso, que ele tem um efeito terapêutico. A escrita é uma forma de desestabilização que busca a estabilidade.
Não sei se ela pode curar ou salvar alguém, mas acredito que ela tem a capacidade de iluminar o quarto escuro onde se encontra uma possibilidade de cura. Ainda assim, é preciso adentrar esse quarto escuro antes de iluminá-lo.
Já passei por momentos muito dolorosos, mentalmente falando. São anos de depressões, neuroses, ansiedades. Em todos esses momentos, a poesia esteve lá, me dando a mão. É verdade que, às vezes, puxou meu tapete ou me empurrou de uma torre alta. Mas foi também ela que colocou um colchão amortecendo a queda.
Transformar a dor em matéria poética é uma das inúmeras formas de lidar com a vida. Ainda bem que encontrei nas palavras uma forma de caminhar ou de me arrastar por aí. Que a poesia possa sempre nos empurrar para frente, para trás, para os lados, não
importa. É preciso estar sempre em movência.
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