FERNANDO ANDRADE-) Teu romance fala como nos constituímos com pessoas, como humanos. Através das ações, escolhas, nossa ficção se faz destino. E você adotou a fantasia para falar de vida. Por que adotou essa linha tão onírica para falar destas escolhas?
FABIANO DA MATA -) A fantasia se dá como um recurso do personagem, como uma solução ilusória das tensões inconscientes. A escolha pela fantasia é a escolha de um palco onde podem se revelar arquetipicamente as expressões do real, enquanto algo que tem efeitos quase palpáveis. A opção pelo traço onírico vem apontar também um ponto nerval, uma linha tênue existente, onde a realidade se confunde com a irrealidade e vice-versa: é o pensamento que se materializa na sua forma desejante, na sua produção de sentido, etc. Nessa seara, através da opção pela fantasia e sua ilusória liberdade, o próprio personagem estabelece inconsequentemente seu “estatuto” do sonho, acabando por se prender nas suas amarras.
FERNANDO ANDRADE-) O duplo no seu livro tem função importante para falar da cisão ou união de facetas do humano. Mas seu livro não cai num certo maniqueísmo de bem e mal, pois, você trata do humano como num processo de sonhos, onde os elementos do recalque, da pulsão, são trabalhados de forma bem simbólica. Fale um pouco desta relação do trabalho cotidiano dos elementos simbólicos da vida?
FABIANO DA MATA -) A duplicidade no livro é sinônimo de algo uno e cindido, intercambiável e combinável, de modo que a demanda, dada ideologicamente no livro como destino certo, sobretudo, pela figura do anjo, é quem dita a dinâmica dessas facetas. Nesse sentido, o jogo dicotômico do bem e do mal, que são, ao final, faces da mesma moeda, vem para produzir movimento.
Quanto aos elementos simbólicos, estes são utilizados tanto para a materialização de algo reprimido e latente, quanto para o enriquecimento da própria história, através das possibilidades de interpretação dos símbolos ali relacionados, pela via do texto e intertexto.
FERNANDO ANDRADE-) Os arquétipos da mitologia ajudam a movimentar sua ação em busca de um uma jornada do herói ou até melhor de um anti-herói. Como trabalhou estes mitos na sua narração?
FABIANO DA MATA -) Para trabalhar com os mitos na narrativa, escolhi um jogo de palimpsestos. Mas não quaisquer mitos, optei, preferencialmente, pela força daqueles já cristalizados no imaginário coletivo, dando a eles novos significados e função de mola propulsora.
FERNANDO ANDRADE-) Há uma relação interessante entre o cristianismo e outras religiões, como a grega. Como cruzou estas linhas no seu romance para ajudar a desenvolver trama e personagens?
FABIANO DA MATA -) Há estudos filosóficos como, por exemplo, do filósofo Henrique Cláudio de Lima Vaz, em que nos revelam o quanto o cristianismo é perpassado pela cultura grega, até mesmo em rituais ainda hoje presentes na Igreja Católica Romana. No entanto, para a formulação do romance, a minha travessia entre as culturas judaico-cristã e grega não foi algo amarrado à filosofia ou ciência da religião. Optei por construir, a partir de mitos gregos como o de Teseu, Sísifo, em alegorias de intenção filosófica como o mito da caverna de Platão, entre outros, passagens paródicas, elegendo um ou outro personagem, ambientação, até mesmo razão de fundo, presentes nesses textos, para a construção da trama.
FERNANDO ANDRADE-) Você abordará certas questões sobre intimidade relacionando, quarto, baleia, peixes, água, corpo. Num processo de interioridade do eu subjetivo. Fale um pouco disso.
FABIANO DA MATA -) O elemento água é muito importante no texto, pois o personagem é alguém que imerge, e este elemento aparece em passagens importantes. Simbolicamente, a água é elemento sagrado para muitas religiões, e está presente nos seus rituais. Água invoca os primórdios do homem, é o elemento que fluiu, flui e fluirá nele e através dele. Ligado a esse elemento fundamental e ritualístico, temos a figura do peixe, que é um ser que tem na água seu habitat natural, e que é também uma imagem com rica simbologia. Metaforicamente, então, digo que o homem ora é um peixe que mergulha em águas próprias. Essa é uma imagem forte que liga os elementos contidos na sua pergunta.
Quanto ao quarto, digo que é um lugar que encobre, mas também que revela muitas coisas indizíveis que, quando se manifestam, não se mostram, pelo contrário, apresentam-se enigmáticas. Por isso o apelo do personagem à fantasia, para que ele represente o que o quarto diz não dizendo através dos seus próprios termos. Como escrito no texto da 4ª capa, “Pelo quarto que tudo falta, vê-se o exterior, como se de dentro dele o inventassem”.
Excelente.