Uma das ousadias mais provocativas da literatura contemporânea é pular a cerca que separa ficção de realidade, misturando técnicas narrativas que envolvem a autoficção, o relato documental e o depoimento em primeira pessoa. Ora carrega traços autobiográficos, outras vezes é disfarçada por um narrador onisciente, e não raro a trama é exposta para o leitor em cartas anônimas, testamentos, gravações ou até uma conversa no bar.
É preciso muita perícia para manejar todos esses recursos sem parecer um pastiche de obras famosas. Há vários autores consagrados que se valem destes artifícios, e até o Nobel premiou em 2022 a francesa Annie Ernaux, cuja obra é marcada pela autoficção.
Ou seja, ninguém está sendo transgressor praticando um gênero que vem se tornando uma marca consagrada deste século. De Marguerite Duras a Lobo Antunes, de Cristóvão Tezza a Ricardo Lísias ou Rita Carelli, cada vez mais a vida dos autores se confunde com suas obras, não esquecendo de deixar semiaberta a porteira da ficção.
E é aí que mora a grande dificuldade: ser criativo num campo cada vez mais congestionado. Às vezes a saída é buscar uma linguagem original, embora também este seja um caminho espinhoso. Um bom argumento é meio caminho andado, e já vai longe o tempo em que os teóricos do nouveau roman apostavam as fichas numa história sem começo ou final. Na era do pós-tudo, todas as cartas estão na mesa, e o jogo literário pode lançar mão de qualquer recurso, até os consagrados.
O recém lançado romance de Wilson Gorj, “A Inevitável Fraqueza da Carne” (Penalux, 2023), brinca – a sério – com este pular-a-cerca entre gêneros. Um pequeno prólogo revela dois amigos no bar, e um deles está escrevendo um romance “com fortes traços autobiográficos”. Logo entramos na parte 1, narrado em terceira pessoa. Uma história linear, enxuta e bem resolvida, que vai direto ao ponto: um homem recebe a notícia da morte do pai ausente, com quem nunca manteve qualquer contato. A mãe, que sempre o isolou e protegeu, está terminando seus dias num asilo, com Alzheimer. O pai deixou uma chácara com herança, e ele vai conhecer o imóvel, no interior de São Paulo. Seu casamento de quatro anos vive um momento de instabilidade, com a mulher querendo ter um filho. A viagem propicia novas relações, com o caseiro e sua família, mulher e filha, a segunda mulher do pai, que ele nunca conheceu pessoalmente, e até uma jaguatirica que tenta várias vezes roubar uma galinha do seu quintal. É a inevitável fraqueza da carne que, no caso dos seres humanos, se entende como a tentação ao pecado carnal.
A trama é realista e despojada de julgamentos, à medida em que vai ganhando contornos rocambolescos. Antes que se pareça enredo de novela global, uma surpresa: após 114 páginas, surge uma segunda parte narrada em primeira pessoa, dando uma guinada estilística e assumindo um tom confessional. Mal nos refazemos do pulo-da-cerca e, 30 páginas depois surge um espantoso epílogo (ou “um posfácio com feitio de epílogo”) que embaralha tudo e nos remete novamente ao prólogo, pois é narrado por um editor.
É tudo verdade? É tudo mentira? Wilson Gorj, editor na vida real, autor de engenhosos minicontos (Histórias para Ninar Dragões, 2012), estreia na narrativa longa (mas não muito, são pouco mais de 150 páginas) mostrando que tem muita garrafa pra vender. Sua escrita é fácil, aparentemente simples, mas embute armadilhas que nos encantam quando são habilmente reveladas.
O único autor citado no enredo – e tem um papel importante na trama! – é Milan Kundera, e duas partes do livro tem epígrafes do autor tcheco. Fica evidente que o título “A inevitável fraqueza da carne” é uma apropriação antropofágica de “A insustentável leveza do ser”. Sem querer se comparar, Gorj se apoia nos ombros do gigante para criar uma obra muito original, que certamente dará um nó na cabeça de seus leitores.
* Daniel Brazil, escritor
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