Fernando Andrade) Você trabalha o desejo, às vezes como engano, ou como recusa de algo não pertencido. Como foi seu trabalho de escrita pensando nessas situações dramáticas. Comente.
Paulo Ludmer) Sobre o drama de sentir desejo às vezes como engano, ou como recusa de algo não pertencido, quero (escrevendo) abranger algo que assola muita gente. A escrita tem que ter uma pegada que fisgue o leitor rapidamente, a escrita não será bem lida (ou lida até o fim) se não aderir a algo que segue dentro do peito do leitor. Por sua vez, há temas contemporâneos como a identidade sexual, o racismo, o sofrimento dos povos imaginários que capturam, com facilidade, muita gente esquecida até nos dias que correm. Mas não são diretamente os meus temas, embora politicamente sejam meus temas, não são os focos nucleares dos meus dizeres. Tenho 79 anos, fui educado em São Paulo (com menos de um milhão de habitantes), branquela, olhos azuis, eurocêntrico. Então, meu coração tem temperos do século dezenove. Meu espírito tem dramas da nouvelle vague.
Fui educado francofônico antes da americanização da educação brasileira. E soaria falso eu tratar de temas que não foram inoculados nas minhas artérias. Por sua vez, abordo desejo e engano que não dependem de raça, de orientação sexual ou de modos de povos originários. São universais sempre. Exerço um tráfico entre imortais e mortos, entre Eros e Tânatos, entre nossas tolas crenças ou obediências a uma civilização que nos permite viver em sociedade, mas nos acorrenta, nos oprime, nos castra.
Fernando Andrade) Você trabalha muito bem suas referências. Como elas entram dentro de suas histórias. Fale disso.
Paulo Ludmer) A gente escreve dizendo o mundo que internalizamos, que vivenciamos, às vezes que lemos e que habitam nosso imaginário. Desde os anos sessenta até recentemente viajei muito como jornalista, como engenheiro executivo, poucas vezes a lazer. Dei palestras no mundo todo. Dei décadas de aulas aqui na FAAP, Mackenzie e PUC. Por isso no Lacres, laços e suspiros (Reformatório, 2022), meu primeiro livro exclusivamente de contos (vide meus trinta títulos publicados em www.pauloludmer.com.br) coletei dados dos cinco continentes. Assim neste livro o leitor está em Wuppertal (Renânia), pula para Montreal (Canadá), daí para Aquidauana (Centro Oeste brasileiros…numa ótica geográfica. Mas os personagens contêm ingredientes históricos do Leste europeu, da Ásia menor, da Oceania, América do Sul…impregnados nos protagonistas que são brasileiríssimos. Convém lembrar que a minha São Paulo absorveu um milhão de japoneses, cem mil coreanos, cem mil judeus, cinco milhões ou mais de nordestinos, milhões de portugueses, italianos, espanhóis, polacos, sírio-libaneses e muito mais. Cresci com todos eles e mais os paulistas quatrocentões. Meu imaginário é absurdamente ecumênico. E, se a Espanha do século 14/15 foi uma potência pelo ecumenismo, suspeito que o Brasil só tem a ganhar com o seu ecumenismo (anti racista, estado Laico, democracia para todos, especialmente para as minorias).
Fernando Andrade) A linguagem da sua narrativa parece muito depurada e burilada. Você costuma escrever muito, em versões. Comente.
Paulo Ludmer) A minha linguagem é micro produzida. Chego a rescrever um parágrafo mais de cinquenta vezes. Comecei aos treze anos e não parei mais. Desovei um livro a primeira vez aos 50 anos (Linguaçodada, Masao Ohno, 1994). Foi melhor assim para não estrear com a ingenuidade anterior. Fiz oficinas de escrita desde os anos 80 com Samir Meserani, Ana Sales, Erson Oliveira, todos da PUC. Depois com Carlos Felipe Moisés (USP) e sua Quarta Feira, por uns dezoito anos. Há uns oito anos trabalho com Noemi Jaffe(USP). Defendo as oficinas como transmissoras de potência, leitura crítica valiosa e privilegiada de nossos textos, e outras funções até terapêuticas. Ocorre que meu português, devido à minha idade e questões geracionais, soa erudito, culto, diverso, para os muito jovens afilhados da cibernética. Não é desagradável, mas obriga em poucas e raras palavras à ajuda de um dicionário. O português brasileiro, em violenta mutação, afasta-se cada vez mais das normas cultas em que éramos educados. Mas quem lê Machado, Guimarães, Drumond, Eça, Camilo Castelo, Fernando Pessoa, haverá de ter paciência com este esforçado Paulo Ludmer. Entrementes, sendo meu objetivo ser lido, minha linguagem não é uma pedra de tropeço para um bom leitor (quem não sonha com um bom leitor?). Mas me traz um problema adicional: muitas vezes parece que a voz do autor- narrador-personagem é uma só. Porque todos falam da forma do meu tempo. Não era empolada em 1980, pode parecer agora. Mas não é, juro. Tente.
Fernando Andrade) Você acabou de lançar um livro de poemas, em qual gênero você costuma se sentir mais solto. Comente.
Paulo Ludmer) Desde o final de 2022, publiquei três livros (a pandemia foi produtiva para mim). O último: Desconcertos de sombra e água, raridades das coisas (Patuá, 2023), exclusivamente de poemas, é o mais maduro e literariamente o mais sofisticado que fui capaz de produzir. Sou ordinariamente ou originalmente poeta. Quem lê poesia? A maioria dos leitores são poetas ou literatos ou aficionados sabe lá D’us porquê? A elaboração da poesia é mais fluente para mim, enquanto a prosa é uma escultura de grande empenho. Me cobram um romance. Sempre tento, mas falho. A poesia moderna é um instantâneo, um fotograma, um corte no tempo. Está mais próxima da imagem, das artes plásticas? A prosa é mais derramada, mais espaço, mais tempo. Dizem alguns experts que a poesia é um quarteto de câmara e a prosa uma orquestra um pouco mais popular. Ler poesia não é desenvolvido em nossas crianças. Não sabem que uma frase não termina numa linha; não sabem procurar, a partir do verbo, quais são os sujeitos possíveis dele. O pensamento abstrato fora da imagem não está preocupando aos educadores, dane-se o valor do imaginário das palavras, tanto faz que as palavras necessárias sejam mais fortes, ignore-se o valor do silêncio barrando palavras até que elas passem pelo vertedouro. Ouve-se que na Finlândia e em alguns lugares dos Estados Unidos as crianças não aprendem mais caligrafia.
Serão seres diferentes, nem melhores, nem piores, diferentes.
Be the first to comment