Fernando Andrade-) A poesia como lírica de luta e combate à mediocridade, parece você compor contra este mundo violento e cheio de miséria. Como construiu esta lírica?
Teofilo Tostes Daniel – É sempre um desafio olharmos em perspectiva para nossa própria escrita e falarmos sobre como ela se constrói. A dificuldade de nos afastamos do que escrevemos se dá tanto pela identificação que sentimos com o que criamos, quanto pelo fato de estarmos temporalmente muito próximos do momento em que vivemos intensamente nosso processo de escrita. Mas, tentando superar um pouco essas limitações que minha resposta inevitavelmente terá, eu percebo que na lírica de “O poeta toma a pólis”, dois movimentos muito essenciais marcam a escrita desse livro.
O primeiro movimento é recorrer ao poder de testemunho da literatura. Por isso, eu vejo que esse foi um livro que se impôs na minha escrita. Eu estava desenvolvendo um outro projeto de livro, mas havia alguns anos que assistíamos a uma escalada dos discursos de ódio marcando nossa política e o debate público. Na verdade, inviabilizando em certa medida o debate público, pois o ódio costuma ser um clamor pela eliminação do outro. E o espanto diante desse ódio está presente desde o primeiro poema do livro, onde lemos que “o ódio, / aplaudido de pé, / se alastra como uma praga / na boca e nas mãos de tantos, / e na morte e no massacre / de quem ousa ser, / mesmo que involuntariamente, // o Outro.” No entanto, quando parecia que havíamos atingido o ápice desta escalada, vivemos algo ainda mais perverso, que foi a combinação de uma pandemia mundial com um governo negacionista. E todos nós testemunhamos os muitos horrores neste período, nestes anos de medos virais, enquanto víamos que “uma horda derradeira segue / a monetizar o inaceitável / costurando olhos onde se leem / obscenos gritos de socorro.” Escrever esse livro foi tentar elaborar um pouco deste trauma, que não é apenas individual, mas coletivo.
O outro movimento que minha escrita faz aqui é celebrar a alteridade. A escrita nos proporciona ser atravessados incessantemente pelo outro. Além disso, ela também é capaz de torcer a linguagem, criando uma espécie de idioma estrangeiro em nossa própria língua. São duas oportunidades imensas de nos darmos conta de que o outro também somos nós mesmos. E se eu sou capaz de conceber a eliminação de quem não se parece comigo (sejam por que motivos forem, que normas eu crie para dizer quem pertence ao meu grupo), também não é impossível pensar que, alguém me vendo como o outro, possa querer me eliminar.
Como resultante destes dois movimentos, percebo que se constrói a lírica que dá as condições de possibilidade da existência deste livro, que para mim é um projeto de saúde, força, potência e resistência por meio das palavras.
Fernando Andrade-) Você trabalha com uma imensa capacidade imagética de compor seus poemas. Partindo disso, como é seu trabalho de carpintaria da escrita? Comente.
Teofilo Tostes Daniel – Percebo que muitos processos diferentes podem ocorrer quando inicio um texto. Se é poesia, quase sempre é mais rápido começar a passar da ideia para o papel. Muitas vezes, para não deixar a ideia esvanecer, preciso tomar nota do que me chega com urgência. Pode ser um verso, uma estrofe… Além disso, a escrita poética costuma me rondar como obsessão. Uma ideia fica pedindo passagem até se esgotar na escritura de um poema. No terreno a prosa, tudo é mais lento. Eu geralmente preciso ter clareza da história que eu vou narrar. Mesmo que eu logo comece a escrever, quando me surge um bom argumento de uma história, quase todo texto em prosa me demanda, geralmente, alguns meses de trabalho.
Além disso, começar a escrever para mim implica em encontrar a forma de colocar essas ideias que estão me rondando em palavras. Encontrar a voz ou as características de um personagem, o estilo de uma narrativa ou as imagens de um poema. Eu geralmente me sento e começo a tatear essa forma. Escrevo e reescrevo as primeiras frases, como uma espécie de aquecimento. Isso fica muito claro quando o texto ganha corpo. Noto que, muitas vezes, o início do que escrevo precisa ser retirado, como excesso, ou retrabalhado. Pois vou encontrando o ponto certo no próprio ato de escrever. Na poesia, é comum alguns versos me chegarem prontos. Então, vou desdobrando esses versos, pensando novas imagens. Parece-me que vou vestindo as ideias de palavras. Algumas servem perfeitamente. Outras sobram ou ficam apertadas demais. Aí eu pego a tesoura para podar os excessos ou começo a tecer mais linhas para o tecido-texto. E não para por aí. Tenho o privilégio de ter na minha companheira de vida uma leitora ativa que, além de ler, intervém em tudo quanto escrevo. Essas leituras quase sempre modificam meu texto quando apontam problemas que eu não estava vendo e sugerem soluções. E esse processo me causa um prazer imenso.
Como escritor, eu tenho como característica me divertir muito com o processo de escrita. Gosto de pesquisar detalhes, imaginar surpresas ou alumbramentos que vou oferecer aos leitores e buscar experimentos na linguagem, abrindo veredas para uma língua estrangeira habitar a própria língua.
Fernando Andrade-) A História para você é um elemento discursivo mas também poético? Fale disso.
Teofilo Tostes Daniel – Certamente, eu olho para a História também como um elemento poético, um elemento que está à disposição da poesia, que pode ser apropriado por ela. Acho ainda, inclusive, que vai mais além. Eu vejo a História como um conhecimento que se apropria de uma característica poética, que é a narração, para construir seus saberes. É uma disciplina que conta, costura e encadeia histórias de pessoas, de povos e de momentos e nisso ela incorpora certos elementos que são próprios do poético.
E aqui é incontornável para mim trazer algo que me ajuda muito a ter esse diálogo poético com a história, que é uma certa concepção de verdade que podemos extrair do conceito de verdade para os gregos.
Verdade em grego é aleteia, uma palavra formada a partir de lete, que significa esquecimento, mais uma partícula de negação que herdamos inclusive no português, o prefixo “a”. Na origem, portanto, o contrário de verdade não é mentira, mas esquecimento. A mentira nesse contexto talvez possa ser pensada como uma das ferramentas que contribuiriam para manter o esquecimento das coisas. Mas não narrar o ocorrido também é outra ferramenta para isso. Pensando desta forma, o silenciamento também contribui para nos afastar da verdade, da lembrança do que ocorreu. E na tradição da poesia heroica grega, é dada ao poeta a função de preservar a verdade – ou seja, a memória das coisas importantes que ocorreram – e evitar que as histórias caiam no esquecimento.
Vejo que “O poeta toma a pólis” aposta na História também como elemento poético, ao trabalhar o forte poder de testemunho que a literatura tem, uma vez que ela dá nome às coisas. A possibilidade de nomear nossas experiências tem uma grande importância individual e coletiva, e está presente tanto na História quanto na Literatura, como áreas discursivas. É importante que muitas vozes que testemunharam o horror, digam “eu vi”, “eu senti”, “eu estava lá”. É muito forte o poder do testemunho. Isso explica a reação contra uma Comissão Nacional da Verdade, por exemplo, instaurada em nosso país 26 anos após o fim de uma longa ditadura. O grande poder desta comissão estava, em primeiro lugar, em ouvir, criando um espaço oficial para que as pessoas pudessem contar o que viveram.
Percebo, portanto, que os poemas do meu livro buscam evitar que o véu do esquecimento caia sobre nós. Sobretudo na primeira parte do livro, intitulada “Psicopatia quotidiana”. Ali, falo do amor causando escândalo enquanto o ódio se alastra, de pessoas que precisam defender o direito de serem o que são, da necessidade de se dosar o tamanho da força que é legítima de ser empregada por quem detém o monopólio do uso legítimo da violência ((o Estado), da morte volátil à espreita, entre outros traumas e ameaças recentes que cindiram e esgarçaram nosso tecido social.
Por fim, acho que há mais uma conexão entre História e Literatura. A História como disciplina se propõe a olhar o passado para compreender o presente e nos ajudar a tomar decisões sobre o futuro que construímos. A Literatura, por sua vez, nos faz imaginar esses futuros, sonhar novos mundos, além de estimular nosso desejo em direção àquilo que queremos. Ela, portanto, acaba sendo uma ferramenta de criação de futuros, já que nos ajuda a projetar cenários e nos estimula a seguir na direção do que é sonhado e projetado.
Fernando Andrade-) Partindo da pólis Grega, como a poesia pode falar da cidade como um elemento semiótico mas ao mesmo tempo heterogêneo e plural cabendo num multiverso identitário? Componha estas reflexões.
Teofilo Tostes Daniel – A tomada da pólis pelo poeta – ou, mais propriamente, pela poesia –, imagem que serve como ponto de partida do livro todo, é uma espécie de contraponto ao lugar a que Platão delega a poesia na cidade ideal. Na República, Platão coloca na boca de Sócrates uma espécie de condenação das artes, sob o argumento de que o papel da arte seria o de copiar as coisas do mundo que, por sua vez, seriam cópias das ideias perfeitas. Como consequência disso, portanto, na cidade ideal seria absolutamente necessário não admitir a poesia.
O tema de uma sociedade imaginária ideal, por vezes concebida como perfeita, retorna em outros momentos a obras literárias ou filosóficas – desde a Utopia de Thomas More, talvez seja um dos mais notáveis exemplos dessa temática, à Pasárgada de Manuel Bandeira. A segunda parte de meu livro, intitulada “Pólis poética”, dialoga com essa tradição, trazendo a poesia para o centro da cidade ideal. Logo na abertura desta segunda parte, ficamos sabendo que “Degredado e clandestino, / o poeta torna à pólis / sem nunca tê-la deixado”.
Se pararmos para pensar que o oposto do conceito de utopia seria distopia, e que as distopias costumam ser mostradas como sociedades onde formas de ser, pensar e agir são profundamente homogeneizadas, perseguir uma utopia seria, por consequência, perseguir uma sociedade plural e heterogênea. Mais do que isso, seria buscar uma sociedade onde a diversidade não apenas estivesse presente, mas fosse celebrada.
É muito importante nos lembrarmos que, quando não celebramos a diversidade de modos de ser, uma parcela das pessoas é desumanizada e o perigo é que sua eliminação acabe sendo considerada normal, ou até necessária. Está aí a base de todos os genocídios. Portanto, há uma ética norteando os poemas de “O poeta toma a pólis”. E, ao abri-los para serem atravessados pela multidão, aponto que “A voz do outro tomando / posse de minha poesia / me lembra que minha escrita / respira fora de mim”. Resgatar a capacidade de diálogo passa, necessariamente, por resgatar a sensibilidade de nosso olhar, nutrindo-lhe de empatia e compaixão por todos os habitantes da pólis. E as cidades têm inscritos em si, em suas ruas e em sua geografia, muitos signos de desigualdade, exclusão e indiferença.
Por fim, tomar a pólis neste livro tem também um segundo sentido muito importante para o nosso tempo. Esse é um signo que nos recorda que é possível novamente circular pela cidade e viver o desejo de encontro com o outro sem que isso signifique um risco. Afirmar, por meio da poesia, o retorno à pólis, nos ajuda a elaborar, narrar e talvez superar os traumas da pandemia que todos nós enfrentamos.
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