Fernando Andrade entrevista a escritora Ana Márcia Cordeiro

Ana Marcia Cordeiro - Fernando Andrade entrevista a escritora Ana Márcia Cordeiro

 

 

 

 

 

Fernando Andrade – Teu romance tem uma estrutura de série  onde a trama é ágil e revela um humor até ácido,  tendo uma dinâmica bem cinematográfica. Como você estruturou este enredo desta forma? Comente.

Ana Márcia Cordeiro Meu único pensamento era escrever sem me perder em detalhes. A criação do mundo onde habitam os personagens, onde a história se desenrola é uma etapa fundamental para a confecção de um romance, e um trabalho minucioso. No entanto, eu fiz questão de ser um pouco negligente com isso. Como o universo do livro é o mundo atual — uma realidade que todos já compartilhamos, embora com nuances distintas — descrever demais as cenas e cenários tiraria isso que você identificou como “dinâmica cinematográfica”. Meu foco estava na subjetividade dos personagens e nas ações internas e externas. Outro parâmetro é que eu queria que a leitura fluísse como se o leitor estivesse visitando uma caixa de fotografias. Daquelas bem desorganizadas, com muitas fotos soltas, fora dos álbuns. Essas fotos soltas contam nossa história, talvez mais do que as que de fato estão nos álbuns — esses cristalizam momentos icônicos (nascimento, formatura…), mas a vida acontece mesmo é nas outras. O humor, por vezes ácido, é o meu jeitinho de lidar com o que me deixa desconfortável. A acidez amolece os desconfortos, tornando mais fácil digerir.

Fernando Andrade – Queria que você falasse um pouco dos seus cuidados com a dialogação, muito bem entrosada num ritmo gostoso para leitura, o tempo parece perfeito para um encaixe até teatral, para uma possível adaptação para o palco.  Como exercitou esta fruição para os diálogos?

Ana Márcia Cordeiro Você é a terceira pessoa que me fala dessa aproximação com o teatro. Não pensei nisso enquanto escrevia. Nos diálogos, minha preocupação era apenas que não “arranhasse” o ouvido. Todos os capítulos e diálogos eu leio em voz alta, gravo e ouço novamente. Onde o ouvido arranha eu volto pra dar mais um polimento. O fato de ter a Roberta Simoni (escritora brilhante e amiga) como Beta reader ajudou na fruição não apenas dos diálogos, mas de toda a história.

Fernando Andrade –  Você toca muito na questão de Gêneros sobre homens e mulheres. A disparidade de afetos, cuidados, que fazem uma relação heteronormativa ser tão desigual. Me fala um pouco disso.

Ana Márcia Cordeiro – Esse é o assunto que mais me interessa atualmente — e acho que vou continuar me interessando por muito tempo. Não tem como ser indiferente pois, partindo do meu lugar social (mulher, branca, classe média baixa), é essa a opressão que mais me atravessa. É a mudança com a qual pretendo colaborar enquanto estiver por aqui. A exploração do trabalho doméstico e afetivo das mulheres precisa acabar. A sociedade tem que encontrar um caminho para dar suporte às mães. Alguns países desenvolvidos já garantiram direitos reprodutivos bem mais amplos — isso inclui direito ao aborto, mas também à licença maternidade longa (dois anos, que nem é tanto tempo assim) junto com uma ajuda nos afazeres domésticos, custeada pelo Estado. Parece muito porque estamos acostumados à lógica da exploração, mas na verdade é o mínimo. Os dois trabalhos mais importantes para uma sociedade são os dois menos valorizados: professores e mães (e não é coincidência que o magistério seja formado principalmente por mão de obra feminina). Se a gente observar direitinho, é o trabalho doméstico que gera toda a riqueza do capitalismo. É esse trabalho quase invisível que permite ao homem o luxo do tempo para ter uma formação e/ou ocupar um cargo remunerado e, principalmente, ser explorado. A jornada de trabalho feminina no lar é transferida para o homem como “crédito”. Parte desse trabalho do homem (onde mora grande parte do trabalho da mulher) fica para o empregador — é a tal da mais-valia. Retire as mulheres dessa equação e o capitalismo desmonta. A solução é retornar para essas mulheres pelo menos parte do que elas provém à sociedade.

Fernando Andrade –  Teu universo parece ter uma identificação com o Pop, na sua estrutura de bricabraque onde certa ludicidade tempera a história. Fale um pouco disso.

Ana Márcia Cordeiro Como o universo do livro é o mundo atual, não haveria como não ser atravessado pela cultura pop contemporânea. Precisei me segurar para não exagerar nos memes! Até porque um excesso tornaria o livro extremamente datado. Era esperado que ficasse datado, mas em excesso, limitaria muito sua “expectativa de vida”. A ludicidade é um recurso pra tornar mais divertidos aqueles relatos que, sem o elemento lúdico, seriam demasiadamente banais, até chatos. Da mesma forma que, enquanto professora, eu vou para a sala de aula com o objetivo primordial de me divertir com meus alunos, a leitura/escrita funcionam da mesma maneira: ensinar/aprender/ler/escrever/divertir. Tudo conectado, indissociável, inegociável! Se não for pra me divertir, eu nem vou. E pra emocionar também, vez por outra.

Please follow and like us:
Be the first to comment

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial