Três poemas de Milton Rezende

Milton Rezende 227x300 - Três poemas de Milton Rezende

Vinna Mara

 

 

 

1.

ANTÔNIMO DE ALEGRIA
 
“quem vive como eu não morre:
acaba, murcha, desvegeta-se.”

 

(Fernando Pessoa)
 
No subterrâneo não adianta sorrir
Porque as nossas presas de marfim
Jamais verão a luz do dia ou o sol.
 
Eu estive nas cavernas por muitos anos
E durante todo esse período nunca recebi
Uma visita que não fosse trazendo a comida.
 
No isolamento não adianta existir
Porque os nossos sonhos dourados
Jamais saberão o que é reciprocidade.
 
Eu estive nas prisões por muito tempo
E durante todos esses anos nunca recebi
Uma notícia que não fosse de morte na família.
 
Na escuridão não adianta insistir
Porque os nossos olhos arregalados
Jamais avançarão além da cortina sem cor.
 
Eu estive nos cemitérios desde a adolescência
E durante toda a minha vida nunca recebi
Uma nota que não fosse de pesar e esquecimento.
 
Do livro “O Jardim Simultâneo”
 
 
 
 
 2.
ESTATUTO DE ERVÁLIA
(Baseado no poema “Casa”, de Carlos Drummond de Andrade)
 
 
Há de dar para o Santo Cristo,
de poder a poder.
Na praça, a matriz,
de poder a poder.
Ter vista para o Cruzeiro
no alto do Santo Antônio,
de poder a poder.
Casas e árvores
comandando a paisagem.
Há de ter muitos espaços
de portas sempre abertas
ao olho e pisar do povo.
Poeira e barro da estrada
nas salas de visitas.
Rio Turvão nos fundos dos quintais
preservando os segredos
da infância e os cadáveres
de família, sepultados.
Terá um verde pasto
com o Herval escrito
no letreiro conservado,
sintetizando o sonho
do novo e do antigo
afinal reconciliados
nas distâncias encurtadas:
fogão de lenha e internet.
Cidade de muitas lembranças
(“e renda de picumã nos barrotes”),
lavouras em curvas de nível
e indústrias nascendo do esterco.
Ervália erguida
no trabalho coletivo, flores
aliviando o suor
e o cansaço dos homens,
recompensados da sede,
da fome e do frio
e do convívio com os mortos.
E as crianças que brincam
resgatando o passado
no presente infinito.
E que todas as pessoas esperem
o dia seguinte
e a Biquinha
alimente a sede
dos projetos futuros.
Ervália há de ser tudo isso,
mais o que sonhamos,
mais os poemas dormidos,
mais a água da chuva nos vidros,
mais os desenhos das nuvens,
mais tudo o que brota
deste solo vermelho e
um sol filtrado através das folhas
de bananeiras e das cercas de arame farpado.
E que todos os ervalenses
escrevam a história de uma terra
que seja a casa de todos,
do contrário não será nunca
a nossa cidade que somos
e que amamos ser,
na distância do encontro
e no silêncio (Careço) das almas.

 

3.
( )
Suspenso na tarde
como uma lâmpada queimada
num porão deserto,
figura o lado esquerdo
de um parêntesis aberto.
 
Seu estado resulta
do itinerário de sombras
em que um homem se perde
na solidão de seus próprios passos,
esquecidos sequer sem deixar uma marca.
 
Sua abertura demonstra
a imperiosidade do erro
que determina sempre
que as flores se abram para cumprir
seu papel de beleza e de decomposição.
 
O parêntesis aberto no escuro
não é senão a necessidade
de se sair do estágio de clausura,
quando se esgota (ou assim se imagina)
a fonte de oxigênio íntimo do ser.
 
Mesmo quando já se sabe
que na asfixia de ele estar fechado
sobrevive pelo menos a sua integridade,
e abri-lo significa a dispersão da energia
que ele guarda de si para si como um transistor.
 
Areia (À Fragmentação da Pedra)

 

 

 

 

Milton Rezende nasceu em Ervália (MG), em 23 de Setembro de 1962. Viveu parte da vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF. Funcionário público, atualmente trabalha e reside em Varginha (MG). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de onze livros publicados: “O Acaso das Manhãs” (Edicon, 1986), “Areia (À Fragmentação da Pedra)” (Scortecci, 1989), “De São Sebastião dos Aflitos a Ervália – Uma Introdução” (Templo, 2006), “Uma Escada que Deságua no Silêncio” (Multifoco, 2009), “A Sentinela em Fuga e Outras Ausências” (Multifoco, 2011), “Inventário de Sombras” (Multifoco, 2012), “Textos e Ensaios” (Multifoco, 2012), “O Jardim Simultâneo” (Penalux, 2013), “A Magia e a Arte dos Cemitérios” (Penalux, 2014), “Um Andarilho Dentro de Casa” (Penalux, 2017) e “Mais Uma Xícara de Café” (Penalux, 2017).
 
milton.rezende@yahoo.com.br
 
estantedopoeta.blogspot.com.br
 
twitter.com/@rezende_milton
 
facebook.com/milton.rezende.96
 
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