Fernando Andrade entrevista o escritor Tomás Prado

Tomás Prado - Fernando Andrade entrevista o escritor Tomás Prado

 

 

 

 

Fernando Andrade-) Muitos autores como Milan Kundera fizeram romances-ensaios com muita receita de filosofia. Eu acho a relação entre as duas atraente. Seu romance fala de um personagem professor de filosofia, vida, arte e pensamento que podem juntar-se numa nova forma de narração. Pensando não só com personagens, mas também a reflexão. Comente baseado no seu livro.

Tomás Prado: Os romancistas cujas obras se situam na vizinhança da filosofia foram os que mais me marcaram. Quando me tornei professor, provocado por estudantes a justificar a importância da filosofia diante de outros saberes e, de modo geral, da vida, esses autores me socorreram tanto quanto os filósofos. Passei a imaginar que o interesse pelas questões filosóficas com mais interfaces com a literatura revela um perfil de estudante e de professor (quem sabe de leitor). Procurei analisá-lo. Servi-me de aspectos caricaturais e do que a experiência e a observação ofereciam. Comparei esses traços filosóficos com os de artistas e perfis psicológicos traçados por outras ciências humanas. A transformação do filósofo em um tipo literário e seu encontro ou sobreposição com outros tipos característicos de nossa cultura serviram de base à escrita do romance. O livro nasceu do mapeamento de um território comum e do que é possível colher ali, o que inclui a riqueza das divergências e os ruídos de comunicação entre aqueles que estão aparentemente próximos e se colocam questões semelhantes.

Fernando Andrade-) Eduardo tem seu lado prático é ótimo professor, embora sua vida pessoal, tenha certa dificuldade afetivas, queria que você falasse deste personagem narrador.

Tomás Prado: Há bastante tempo me interesso por artifícios literários que fazem com que o conjunto da obra pareça contradizer o discurso do narrador em primeira pessoa. Nesses casos, é preciso atentar ao que está nas entrelinhas e ao que se descobre em uma leitura a contrapelo, nas ironias. Imaginei que isso seria especialmente interessante no caso de um narrador que detivesse um suposto saber, como é o caso de Eduardo. Porém, acho que ele pode ser mais do que um anti-herói coberto de contradições e sua história ser mais do que uma desconstrução do homem branco pseudoeuropeu. Pretendi lidar com precariedades na busca por autoconhecimento, com as quais muitas pessoas talvez se identifiquem, o que apontaria a uma característica de época. Consumimos muitas narrativas diferentes sobre nós mesmos, cada uma delas com justificativas e coerências impressionantes. Somos objeto de uma guerra epistemológica silenciosa e que apenas os especialistas de cada lado percebem. No meio deles, nem os filósofos escapam.

Fernando Andrade-) Gostei demais da parte dramatúrgica do livro, principalmente dos diálogos encaixados na ação narrativa. Como fez esta relação dialógica entre parte mais cerebral com vida cotidiana dos personagens.

Tomás Prado: Que bom saber! Sempre pretendi que o livro fosse um romance e me preocupei em não fazer da literatura um modo de enfeitar ou ilustrar a filosofia. Esse foi o caminho natural de uma investigação com certos compromissos. Entre eles, conquistar o aprofundamento em questões filosóficas específicas, como aquelas relacionadas à espiritualidade, conforme houvesse coerência dramática com essa busca. Considero importante também que o romance, como gênero literário, situe o leitor em uma atmosfera estranha, como a cetologia e a caça às baleias em Moby Dick, a cavalaria andante em Dom Quixote e a teologia medieval em O nome da rosa. Porém, como essas obras revelam, nunca basta uma atmosfera rica em detalhes sem ações, diálogos e acontecimentos que movimentem as expectativas do leitor. Em A chama remota, a filosofia deveria ser essa atmosfera estranhamente sedutora cercada por elementos culturais da atualidade. Tentei, com os movimentos dramáticos, criar dissonâncias no interior das ciências humanas, jogar suas placas tectônicas umas contra as outras para produzir um terremoto. Isso ocorre pelas trocas e dinâmicas entre personagens — professor e alunos; médico e paciente; relações de amizade; e no rastro de dinâmicas amorosas características de uma geração.

Fernando Andrade-) Agora saindo um pouco do seu livro, a política nestes tempos nos últimos 4 anos, armou golpes contra a filosofia pura, contra a dialética do debate, da síntese e antítese. Como estão as aulas de filosofia hoje na educação fundamental e ensino médio.

Tomás Prado: O romance aborda esses golpes contra a filosofia, que podiam ser previstos em 2018,  ano em que a maior parte da história se passa. A discussão aparece no âmbito do ensino superior, com o qual tenho mais familiaridade. Com relação à presença da filosofia hoje na educação fundamental e no ensino médio, sei que a posição dos últimos anos começa a ser revista, o que é um alento. No ensino fundamental, a Base Nacional Comum Curricular estabelece que se fale de “filosofias de vida” no componente de ensino religioso, opondo crenças religiosas e filosofias de vida seculares, voltadas à ética. Há no mundo outras propostas interessantes que poderiam ter inspirado o ensino de filosofia para crianças, com foco no raciocínio, no pensamento crítico e no interesse investigativo. Talvez uma abordagem mais profunda, que poderia ocorrer no ensino médio e na educação de jovens e adultos, exija uma consciência maior das lacunas de sentido no mundo e de nosso lugar nisso tudo. Em todo caso, as menções que a BNCC faz à filosofia no ensino médio, como parte da área de ciências humanas e sociais aplicadas, são irrisórias. Esperemos que, com a atual revisão do chamado Novo Ensino Médio, isso seja modificado. É preciso defender uma educação em que a cultura, compreendida na sua diversidade, não sirva apenas para escamotear um propósito técnico, de servir unicamente ao mundo do trabalho.

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