Fernando Andrade- Minas se diz me conta um caso, maior que a vida. No seu livro de poemas a gente sente que você ultrapassa esta anedota, e conta-poema sua vida, cada minuto de suas horas. Quem acompanha sua rotina sente-se mais íntimo do livro. Fale sobre isso.
André Luís Câmara – Eu parto muito de acontecimentos que vivencio, de coisas que olho na rua, de sentimentos que experimento, de lembranças e, claro, de leituras, mas insisto em não abrir mão da imaginação. Manacá talvez seja o meu livro que passe a impressão de ser o mais autobiográfico de todos. E, em certa medida, realmente é. Tive uma covid-19 grave, quando estava somente com a primeira dose da vacina, em junho de 2021, fiquei internado 15 dias, seis deles numa UTI, num hospital municipal em Nova Friburgo. Passei por momentos de sofrimento emocional um pouco complicados, depois de mais uma separação e essa doença, que não foi fácil. Tudo isso acabou transparecendo nos poemas do Manacá, principalmente no que dá nome ao livro. Fui mexendo e retrabalhando os versos, ao longo de quase três anos. Primeiro, no final de 2022, eu finalizei o Circunstâncias, meu livro anterior, que saiu em fevereiro de 2023, também pela Patuá. Gosto de pensar que Circunstâncias e Manacá são livros que se completam, exatamente porque foram trabalhados ao longo desse processo de doença, separação, desemprego. Claro, tinha receio de pudesse passar uma ideia de autoajuda. Espero que tenha conseguido ir além disso. Até perto de ser publicado, o livro Manacá abria com o poema homônimo. Mas aí, eu já estava num outro momento, podendo pagar um aluguel que não fosse muito caro. Então aluguei um quarto na Casa Nise, em Santa Teresa, bairro onde morei por tantos anos e para o qual, felizmente, voltei. Três meses depois, eu já estava aqui alugando esta casinha pequena, de sala e quarto, que eu adoro, e onde espero, em breve, começar a escrever alguma coisa nova. Naquele quarto na Casa Nise (onde a Dra. Nise da Silveira viveu durante cinco anos, também alugando um quarto, de 1927 a 1932) eu escrevi o poema “Talhos”. Ele nasceu com cara de “poema-para-abertura-de-livro”. A partir daí, reorganizei todo o miolo, que já estava pronto, e coloquei o poema “Manacá” no fim. Fiquei numa alegria danada, porque ficou tudo com muito mais sentido. E o “Manacá”, no fim, fica como uma espécie de livro à parte. Com o verso “há um manacá que perdura”, que está no “Talhos”, eu tentei fazer uma costura com o título do livro e dando um destaque para o poema final. Deu vontade de participar da Flip e o Eduardo Lacerda fez o livro a jato para eu estar lá, no fim de novembro de 2023, com a Patuá, na Casa Gueto, entre tanta gente maravilhosa. Tenho muita sorte em contar com a boa vontade da Patuá. Serei sempre grato a Edu, Pricila Ricardo Escudeiro, Amanda Vital e toda a equipe da editora.
Fernando Andrade- Seu trabalho está muito perto da música, sua linha melódica poderia se encaixar quase num formato de canção. Como é este trabalho de escrita poética? Desenvolva.
André Luís Câmara – Em seu livro de memórias, Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira chega a dizer algo como “não há nada no mundo que eu goste mais do que de música”. É também o meu caso. Não qualquer música e nem a toda hora, mas não vivo sem música. Passei quase três anos sem meus LPs, meus CDs, vitrola, aparelho de som. Há quatro meses, quando me mudei para esta casinha, pude reaver meus discos e meus livros. E ainda há muita coisa encaixotada, porque falta espaço. Mas adoro estar no meio dessa bagunça de livros e discos espalhados, morando sozinho, no meu canto, podendo ouvir novamente a MEC FM no rádio do aparelho de som. E, nos momentos de silêncio, que também aprecio, surge sempre um pio de passarinho ou aquele “cri-cri” que os grilos fazem. Gosto do silêncio para ler e escrever e, nesses momentos, a música me atrapalha, me tira a concentração. A não ser que seja uma leitura de notícias, uma coisa mais rápida, trivial. Jamais gostei de ler, estudar, ouvindo música, porque me desvia completamente a atenção. Pode acontecer de eu escutar uma música, uma canção específica para desenvolver algum trabalho, que pode ser um poema. Mas isso é outra história, né.
Especificamente em relação à música, minha escrita poética algumas vezes parte de uma ideia ou talvez de ilusão de canção. Como não sou melodista e nem toco nenhum instrumento, uso uma melodia como uma espécie de rascunho, uma melodia que eu mesmo invento e que, em geral é ruim, não se sustentaria como arte. Mas o verso vai atrás. Depois abandono a música e vou remexendo as palavras, ajeitando o ritmo. Nem sempre é assim, claro. E isso nem chega a ser uma constante, embora já tenha acontecido diversas vezes. Muitos poemas são feitos a seco, sem estarem ligados a uma ideia de melodia. Não há receita nem fórmula. Muitas vezes eu saio por aí caminhando com uma música na cabeça, imagino arranjos, chego a ouvir os instrumentos. Por isso, muita gente me vê falando sozinho. E posso falar sozinho, sim, mas ocorre de, em grande parte das vezes, eu estar cantarolando uma melodia, com ou sem letra.
Tenho poemas que foram musicados, como tenho letras que fiz sobre melodias de parceiros e parceiras. E letrar melodia é das coisas que mais me encantam e que, infelizmente, fiz pouco.
Eu gosto cada vez mais de ouvir música sem letra, seja música de concerto ou música popular. Talvez porque já tenha palavras embaralhadas na cabeça, no meu trabalho como assessor de imprensa, como revisor, ou em textos que surgem feito um esboço para o que depois irei escrever e reescrever de forma ficcional.
Fernando Andrade- Neste período de 2019 a 2023 passamos por uma pandemia. O que isto se sublimou em ação ou depois em memória para escrever o passado remoto?
André Luís Câmara – Olha, o poema “Manacá” trata exatamente disso e se refere bastante a esse período. Já no meu livro Desgaste, que é de 2020, e que como todos os meus livros, foi publicado pela Patuá, a pandemia e o período político triste e depressivo que vivemos transparecem em pelo menos dois poemas: “Quarentena” e “Antes que a noite que se alonga”. No livro Circunstâncias isso é mais aprofundado em diversos poemas e, no Manacá, está escancarado em quase todos os poemas, a começar obviamente, pelo que dá nome ao livro e no qual me refiro à minha internação por covid-19, à minha separação mais recente e a todo esse período.
Fernando Andrade- O espaço da cidade te dá inspiração para muitos poemas. Você é um andarilho, andar pelo entorno, para criar espaços para recordações geográficas? Comente.
André Luís Câmara – Eu não sei dirigir, nunca tive carteira de motorista. No dia a dia uso basicamente ônibus ou metrô. Mas o que eu gosto mesmo é de caminhar, andar às vezes por quilômetros de distância. Sou um pedestre convicto. Mas sou também muito urbano, não faço trilhas pela mata ou coisa assim. Até pode acontecer, mas é muito raro eu viajar para uma área de mata. É até mesmo raro eu viajar. Viajo mesmo, e muito, na minha própria cidade e, especialmente, no meu bairro, que é Santa Teresa. Quando chego do trabalho, venho andando. Ou pela Escadaria Selarón, que não à toa faz parte da paisagem do poema “Manacá”, ou pela Hermenegildo de Barros, na Glória (quando venho de metrô), ou ainda pela Rua Z, quando desço no ponto próximo ao Catumbi e ao Sambódromo. Aí, quando subo por lá, que é bastante íngreme e até difícil (é uma possibilidade de fazer exercício no cotidiano) saio no Largo das Neves e caminho até o Curvelo, onde moro. Houve uma época em que eu ia bastante a São Paulo e adorava caminhar por lá. A Rua Augusta, por exemplo, é uma viagem pra mim. Eu queria muito falar da minha relação com a Rua Augusta e acabei fazendo isso no poema “Indagações de uma conversa que eu não tive”, que está no meu livro Circunstâncias, é uma tentativa de diálogo com meu avô materno. Não o conheci, porque ele morreu quando minha mãe tinha sete anos de idade. Minha mãe era carioca, mas na época da morte desse meu avô a família morava em São Paulo.
Outras cidades por onde estive a passeio ou a trabalho estão na memória dos meus passos e fazem parte de poemas que publiquei.
Em dias de chuva constante, eu fico um pouco chateado de me ver impedido de sair por aí andando. E por isso também o período da pandemia pra mim foi bastante traumático. Em algumas situações, a rua pode assustar ou até entristecer, indignar, tem muita degradação, sujeira, abandono, violência, miséria, gente desassistida… Hoje em dia, moro numa casa pequena, mas que tem pra mim uma coisa fundamental, que é uma janela com paisagem, paisagem urbana, que mistura o casario de Santa Teresa com árvores, passarinhos e um pedaço da Chácara do Céu e do Parque das Ruínas. E dá pra ver um céu que parece cinema. É uma forma de estar na rua, mesmo dentro de casa. Faço coro com João do Rio: “eu amo a rua”.
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