A Ars Combinatoria original em novo livro de poemas de Fernando Sousa Andrade | por Alexandra Vieira de Almeida

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Alexandra V Almeida Fotorecente - A Ars Combinatoria original em novo livro de poemas de Fernando Sousa Andrade | por Alexandra Vieira de Almeida

Alexandra Vieira de Almeida 

Escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ)

O novo livro de poemas de Fernando Sousa Andrade, Cânticos para enlouquecer Cristo (Penalux, 2024), se caracteriza por seu hibridismo: são 27 poemas em forma de poesia, 1 poema em prosa, 1 miniconto poético e 3 contos com a densidade e linguagem lírica.
A diversidade de gêneros, cujo desdobramento se origina do gênero lírico em suas múltiplas faces. Além dessa diversidade estrutural, encontramos várias referências na sua obra ao campo do conhecimento: filosofia, psicanálise, mitologia, religião, medicina, cinema, música etc.

O primeiro poema tem um diferencial, é numerado em romano enquanto os outros poemas tem o valor numeral, todos com seus respectivos títulos. Romano, como uma forma de ironia à época de Cristo, cujo poder de Roma ameaçou a liberdade e o amor ensinados por ele. Em “Sibilina bailarina Lacan”, temos sonoridades viscerais, em que percebemos uma gramaticalidade citadina, como em outros poemas, um ambiente urbano-lingual, como prisioneiros desta selva de pedra, com a natureza como desvio, via de escape, seja no interior (caatingas e restingas), seja mitológica (campos, bosques e colinas de Pã) ou a natureza natimorta, na qual o processo de urbanização e industrialização absorveu para a exploração do homem e sua força de trabalho, fazendo uma crítica mordaz ao capitalismo.

No poema “Casa vazia”, vemos a metáfora do “antesmente verbal”, utilizando a expressão de Manoel de Barros. Fernando Andrade retrabalha o léxico de forma original, com sua engenhosidade poética desloca sentidos de seu signo mais pragmático para buscar um significado mais poético e originário, onde o Verbo e o Sagrado adquirem um estatuto de poder criativo. Leiamos “Casa vazia”: “um monge nervoso/porque esqueceu/a chave de casa/catalogou algumas/palavras em ordem/de preferência 1 aflito 2 conflito 3 reflito 4 ação refletida/Casa vazia – olhar a casa como se não estivesse dentro/o monge depois da aflição/se viu numa zona de conflagração/meditou, meditou, meditou/ e viu que a casa é vazia,/pois ele não tinha casa, /morava num mosteiro.” O vazio é preenchido pela linguagem, o duplo sentido da poesia: o silêncio e a palavra. Para o monge: a meditação e a oração. Dar sentido é verbalizar. Antes do verbo, o vazio, a preparação para o dom de criar. Deus nesse sentido de esvaziamento dos sentidos cria a imago Dei, cuja metáfora é uma casa vazia, o mosteiro.

Nessa imagem de Cristo proposta por Fernando Andrade, resgata-se um paganismo com traços sincréticos ao cristianismo. Um Cristo-Pã, ligado a dor dos esquecidos e loucos.
Os mortos devem ser perdoados e a natureza é o campo fértil para a regeneração do homem, cujos elementos de alegria e prazer elevam as almas para além de um sofrimento vazio, como podemos perceber no poema-título. Dessa forma, Fernando vai retrabalhando os signos e os colocando em novos e inusitados lugares, diferentes do tradicional e do gasto: “Cristo, me deixai os sufixos/não quero o monte Sinai/quero que ensinai o amor.”

Os seus textos se valem de uma ars combinatória, a vida é um intenso jogo de contradições, entrecruzamentos de ideias, imagens, palavras e ritmos, criando diferenças no campo das analogias, como em “Conto do gato e do rato depois do poema” em que, a partir da intertextualidade (Drummond e dito popular), transmuta com sua singularidade seus elementos para formar uma terceira-margem, como podemos observar também no seu poema igualmente metalinguístico “Coautoria”, em que temos a dicção do escritor trabalhada pela tecnologia (tecla), mas com a “prova e o original”, isto é, os escritores são uma colcha de retalhos, em que rendem tributo à memória literária ou de saberes, explorando o passado ou o presente para tecelagens futuras. Fernando Sousa reinventa este feixe colaborativo, num duplo processo linguístico, o antes e o agora, quando transmuta com suas linhas invisíveis e visíveis esta tradição com seu dedilhar original.

Para concluirmos, vamos nos adentrar um pouco no universo do conto. Em “Acha, lenha, poética para queimar”, encontramos o matriarcado, o poder feminino antes da contaminação de uma violência masculina. Ao invés de “bacantes”, os homens trazem seus “bacamartes”. Fernando Andrade configura as palavras na sua simbologia poético-feminina, percebendo aí, a dinâmica da delicadeza face à crueldade imposta para elas, que têm o poder dos “versos das rendeiras”, os cânticos e os cantos da natureza, contrariamente às civilizações extremamente urbanas com seus governos. Terminamos, com a citação do primeiro parágrafo do conto, que diz: “Acha, diz a mulher da tribo, é um pedaço de madeira que se recolhe ou não para usar no fogo. Poeticamente se diz no feminino, e bem mais bonito. Agora, os homens civilizados padecem desta palavra-só verbo no masculino, inclusive para disfarçar as invasões às tribos indígenas.”

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