Fernando Andrade entrevista a escritora Daiana Pasquim

capa do verde 2 - Fernando Andrade entrevista a escritora Daiana Pasquim
 
 
 

Fernando Andrade – Sua escrita me lembrou aqueles quadros onde a tinta se camufla e misturado a tons, nuances, reflexos, onde o poder da palavra é evocar imagens. Como foi seu processo para este livro de contos. Comente.

Daiana Pasquim – A capa do livro atrai essa percepção, a Litteralux fez mesmo um bom trabalho. Acredito que escrever é realmente como organizar um estúdio de possibilidades diante do imagético do leitor. Apresentar os elementos que, na artimanha da leitura, cada qual pode utilizar para ser mais livre e mais completo. É um movimento para libertá-lo de sua condição daquele momento, às vezes dolorosa e opressora, para uma nova dimensão, onde tudo é capaz; ou de potencializar seus estágios criativos e de alegrias que fazem a vida valer (ainda mais).

Sobre meu processo de escrita, posso dizer que dessas narrativas emergem duas fascinações: uma predileção a personagens jovens há mais tempo, ou seja, às pessoas idosas e mais antigas, ou a tempos e personagens mais remotas; e também sobre as antíteses e sensações de antônimos: o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, a relação jovem-idoso/com seus responsáveis; a extroversão e a introversão; etc.

Se no Trincas, afirmava que sempre existe uma terceira via, agora vemos embates entre um extremo e outro. O que absolutamente não trato como uma inconsistência em minha escrita, mas sim como uma artimanha para provocar a abertura de uma nova portinha de interpretação àquele que já é meu leitor. Até porque, na sutileza da interpretação, ele mesmo vai encontrar essa terceira via, tão inenarrável e por vezes inalcançável. Acredito que essa foi a captura que a leitura aguçada e a análise da retomada escritora Maria Valéria Rezende fez, sobre o livro. Suas palavras generosas tornaram-se a orelha do Verde.

Fernando Andrade – Este contraste entre o verde onde está para o uso a vontade e o amadurecido onde a ideia do ser está vivo ativo é um processo também metafórico, para criação do livro tanto como a vida quanto a arte. Comente.

Daiana Pasquim – Sim, o título inspirou-se em seu conto de abertura: “Resistência em musgo”, cujo primeiro título – ainda manuscrito – fora “Memórias enverdecidas”. Depois fui lapidando até consolidar em Verde Amadurecido. O verde também relaciona-se ao novo, ao jovem, ao dia, ao deste mundo; enquanto que o amadurecido, aos tempos idos, ao idoso, à noite e desesperança, ao obscuro do outro mundo, o dos mortos. Quis trabalhar essa antítese respeitável que ativa nosso processo de humanização. No livro todo, persigo essas fronteiras entre nossa percepção e a imaginação ou entre esta e a memória. Creio que Maria Valéria foi muito feliz quando concluiu que “nestes contos que transitam pela permeável e vaga fronteira entre concretude e imaginação, com bela sucessão de imagens, riquíssimo vocabulário, inventivas metáforas que nos ajudam a expandir nossa própria imaginação.” O livro nasceu para nos provocar com os contrastes, como você e ela bem notaram.

Fernando Andrade – Você trabalha com literatura por dentro, seus motes, suas referências, talvez num processo de aglutinar certo inconsciente coletivo das ficções. Comente isso.

Daiana Pasquim – Interessante você comentar sobre o inconsciente coletivo das ficções, pois assim chega a um de meus fatores inspiracionais na fase final de lapidação de Verde. Reli, com afinco e sede, Ficções de Jorge Luís Borges. Em meu livro há, inclusive, “Revisitando as ruínas circulares de Borges”, que em abril havia saído no jornal literário Cândido, editado pela Biblioteca Pública do Paraná. Escrevi esse texto “numa amanhecida”, como efeito chicote. Quero dizer, havia relido o conto das ruínas circulares à noite, antes de adormecer E acordei pensando na cor da gengiva dos leopardos e tudo o mais. Salvo engano, esse manuscrito tem uns cinco anos. Para o Verde, eu mergulhei no texto que nasceu bem mais simples e empreguei com meu próprio amadurecimento, para questionar coisas do tipo: “Como dar uma obra por terminada? Seja um texto, seja um homem?” Essa reflexão nos obriga a seguir melhorando diariamente, seja como seres humanos, seja os motes e referências que buscamos para escrever.

Fernando Andrade- Como é possível imaginar através de uma linguagem totalmente poética, personagens, travessias, enredos, arquétipos de histórias? Explana um pouco.

Daiana Pasquim – amadurecimento é uma resposta justa. Escrever e ler muito é um exercício que me acompanha há mais de três décadas. A escrita de poesias como um hábito e a publicação precedente de Trincas (Penalux, 2023) é outro impulso. Procuro cultivar a imaginação diariamente de uma forma livre, ao mesmo tempo que disciplinada. Leio com afinco, em língua portuguesa, em francês, italiano, inglês, chegando a cerca de 50 livros lidos no ano até agora, no lançamento do Verde (13/set).

Também estudo arquétipos em profundidade. Na dissertação, em 2016, trouxe Carl Jung e o arquétipo coletivo feminino, cuja construção das mulheres me baliza para criar personagens femininas, pelas quais tenho predileção. Mas gosto de tentar coisas novas, como iniciar o livro com um homem hermético e viúvo. Tenho tido imensuráveis percepções sobre esse conto e esse personagem, com leitores dizendo que se identificaram, que são seu eu do futuro, por exemplo. Impressiona-me esse movimento de notar o leitor entrar no livro, tomá-lo como parte de si. Nessa hora, confirmo que os arquétipos estão funcionando. E confio que o mérito deste movimento incomum está também na sensibilidade que tateio com a linguagem, nas opções de escrita que tomei, no “tiquinho” de alma que coloquei em cada linha. É a metáfora da quarta capa e do posfácio: “compor páginas a partir de pétalas”.

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