Fernando Andrade – A maioria dos seus contos são narrados por crianças. Que tipo de pertencimento a infância lhe deu para construir ou desconstruir a família. Comente.
Viviane Santiago – Tive uma boa infância. A maior parte de minhas memórias infantis são de um cenário familiar de acolhimento. Ainda assim, penso que a infância seja um dos espaços mais hostis pelo qual passamos. Partilhei a vida com crianças que sofriam violência dentro do núcleo familiar. Meninas e meninos abusados de tantas formas. Criança que morreu criança. Coisa triste de se ouvir falar.
A literatura invisibiliza, de certo modo, a voz narrativa infantil. Trazer um livro para adultos em que as histórias são contadas por crianças permeia um desejo pessoal de que nós, como adultos, possámos refletir a maneira que estamos criando nossas crianças, como um todo, exercendo um papel social de uma prática que deve ser coletiva e não unicamente familiar.
Fernando Andrade – Me chamou atenção uma poética sóbria, que não chega a ser seca, mas eivada de afeto. Há um cuidado do pormenor em adentrar o universo mental desta fase da vida que é a infância, ou até adolescência. Fale um pouco disso.
Viviane Santiago – “Usar a voz infantil exige cuidado. Este é um livro sobre dor, e para falar de dor, é necessário, no mínimo, delicadeza. As crianças enxergam o mundo de forma muito direta; para elas, o que é bom ou ruim não admite rodeios. Quando uma criança sente fome, dor, medo, terror ou amor, tudo é legítimo e imediato. Por isso, ao escrever este livro, precisei me despir de tentativas de ressignificação e abordar os temas dos contos com a mesma pureza e simplicidade com que as crianças os vivenciam.”
Fernando Andrade – A paternidade é sublimada nos contos por uma descontinuidade com relação à educação, cuidado, proteção. Me fale disso.
Viviane Santiago – Trata-se de uma estrutura social que, infelizmente, é muito presente no país e no mundo. A ausência paterna sentida em alguns contos não se refere apenas à ausência física, mas à retirada pragmática da figura masculina na criação cotidiana dos filhos, tarefa que, em geral, recai sobre a mãe, tia ou avó. Reuniões escolares, alimentação, idas ao hospital — tudo isso geralmente é conduzido por mulheres.
Vejo também a importância de representar a centralidade da figura feminina nos lares, já que muitas vezes elas assumem esses papéis de forma integral. Essa descontinuidade da paternidade revela um desequilíbrio nas expectativas sociais sobre a família, abrindo espaço para reflexões sobre as diferentes formas de parentalidade e criação das crianças.
Fernando Andrade – Você acha que para uma narradora deve-se afastar-se de certa experiência psicologizante de personagens e ações dramáticas. Comente.
Viviane Santiago – Depende do que se quer contar. Em certos contextos, um aprofundamento psicológico pode ser necessário para revelar camadas importantes da trama ou enriquecer o desenvolvimento de personagens. Afastar-se de uma abordagem pode ser uma estratégia válida. Não foi para mim durante o processo de criação do livro, pois eu desejei que o leitor pudesse de maneira intima sentir toda a carga dramática e emotiva que estava sendo descritas nos contos.
Obs: A obra contou com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas e o Programa de Ação Cultural – PrOAc (Edital 18/2023).
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