Fernando Andrade entrevista o escritor Bernardo Caldeira sobre livro ‘Anticorpo’

Bernardo Caldeira - Fernando Andrade entrevista o escritor Bernardo Caldeira sobre livro 'Anticorpo'
 
 
 
 

FA: Seu título parece funcionar de forma ambígua, quando usada pela medicina temos um sentido, porém de forma na literalidade um ataque à autonomia do corpo, sua individualidade, proteção, liberdade. O poema está à luz do dia para anarquizar verdades absolutas, maquiavelismos de estados. Fale um pouco disso.

BC: Acho muito interessante você ter capturado essa ambiguidade do título; de fato, ela está lá. O livro me parece apontar para algo que ainda não compreendemos muito bem o que seja – essas transformações radicais que nossa época tem trazido para nós, em vários campos, e um questionamento profundo do que significa ser humano diante da velocidade incrível com que as fronteiras têm se borrado: a fronteira entre natureza e cultura, entre homem e máquina, entre sujeito e ambiente. Porém, não considero isso como um ataque à liberdade do corpo – pelo contrário: penso que colocar as fronteiras em xeque abre novos espaços de liberdade que muitas vezes tememos explorar justamente pela estranheza que essas zonas fronteiriças causam na imagem que temos de nós mesmos, dessa suposta autonomia do corpo. Nosso corpo é híbrido, habitado por faunas e floras (inclusive intestinais) das quais não nos damos conta, e a unidade corporal é denunciada da mesma forma que a autossuficiência do indivíduo: nosso corpo – nosso ser – é toda uma rede – social –: uma floresta, um micélio, é todo um ecossistema.

FA: Há na sua poesia um diálogo com a informação que digo aberto, entrópica, mas sem, classes, sem gêneros, uma linguagem poliglota, plural. Porque estende sua poesia para tantos campos do saber. Comente.

BC: Suponho que isso seja consequência direta dessa exploração das franjas, das zonas de indistinção entre as fronteiras de quaisquer espécie, sejam elas ontológicas ou epistemológicas. Penso que as especializações e fronteiras entre as diferentes disciplinas – entre ciência, arte, filosofia, religião, etc. – nos impede de fazer articulações importantes para percebermos o mundo de outro ponto de vista, inclusive do ponto de vista do outro; ficamos mecanicamente reduzidos à nossa área de especialização ao ponto de dizermos: “sou filósofo”, “sou cientista”, “sou cristão”, “sou lacaniano”, etc. e nessa identificação a um predicado qualquer a que somos indexados acabamos por perder a capacidade de pensar e sentir a alteridade, tanto externa (com relação aos outros) quanto interna (com relação a nós mesmos). Essa postura poliglota, plural, é encontrada em vários poetas, em especial em Fernando Pessoa, com seus heterônimos: “cárcere do ser, não há libertação de ti?”, suplicava ele.

Não gosto sequer de dizer que “sou poeta”, mas por outro lado consinto com esse epíteto com a condição de considerá-lo o nome que dissolve o próprio nome, o ser que dissolve o próprio ser – pois essa é a tarefa da poesia, da arte em geral, de tudo o que é sagrado: livrar as coisas de ser coisas.

FA: Há no seu discurso trabalhado de forma poética, não uma veia mestranda, mas algo que se importa da filosofia. Como uma sala com muitas vozes e escutas ao mesmo tempo. Fale sobre isso.

BC: Não digo que é em relação à filosofia em si, estritamente, mas, como disse acima, em relação a articular diferenças no campo do saber, a não me identificar demais com um ponto de vista sobre determinada coisa, porque posso pensar um mesmo fenômeno sob o ponto de vista da filosofia – ou, mais precisamente, de uma certa filosofia –, ou da psicologia, ou da ciência, ou mesmo da espiritualidade. Nada comporta uma visão única, inequívoca, tudo é feito de múltiplos referenciais – o que também não quer dizer que possa se dizer qualquer coisa sobre algo. De modo que tento sustentar a coexistência de diferentes vozes sobre uma mesma coisa, vozes que podem muitas vezes ser contraditórias, mas ainda assim harmônicas, como em acordes dissonantes.

FA: Como gosta de trabalhar as citações dentro de um livro de poesias. Referências à vontade. Comente.

BC: Se entendi bem sua questão, você se refere às epígrafes do livro. Elas pra mim são de extrema importância, condensam muito profundamente o conjunto de poemas e ideias contidas em cada capítulo. Em geral, são epígrafes de poetas, mas há, por exemplo, uma epígrafe do grande físico Richard Feynman, que também arriscava seus versos em horinhas de descuido. Me alegra muito poder testemunhar e contribuir para que a poesia ‘invadir’ outros campos do conhecimento, contaminá-los, dissolvê-los na ordem maior das coisas, e assim nos lembrar que as distinções entre saberes não passam de pálidos traços na areia.

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