Fernando Andrade – Você organiza e escreve há muito tempo no coletivo Clube de leitura, este livro como foi pensado, e para mim, muito bem editado para ter certa unidade de estilo e temas. Fale sobre isso.
Guilherme Preger – Sim, todos esses contos foram escritos para o coletivo Clube da Leitura, que inclui práticas de leitura e escrita. Os contos selecionados cobrem uma produção de 15 anos. Sempre disse que o Clube da Leitura é uma oficina de literatura. Gosto dessa ideia da oficina e do coletivo, o que tem a ver com trabalho de escrita, mais do que seguir uma ideia genial. Para mim, escrever ficção é também um ato de comunicação, por isso aprecio as leituras e os comentários dos companheiros. E, embora lá no Clube seja cultivado um repertório imenso de motes e de conteúdo, o que, a meu ver, dá unidade a este livro é seu aspecto formal. Eu diria que dentro das regras que nós mesmos nos obrigamos, como parte de um jogo, há duas exigências formais que unificam os contos: a brevidade e a urgência. Pensei em trabalhar mais longamente este ou aquele conto, mas cheguei à conclusão de que se fosse mudar os contos, acabaria por estragá-los. A brevidade obriga à capacidade de concisão que é, a meu ver, algo que fornece potência formal. Já a urgência é uma característica de outra ordem: um chamado para participar do jogo literário, respondendo às vezes na última hora a um desafio de criação. No livro, afastado das situações em que foram escritos (que eu mal lembro), a urgência sobressai como uma necessidade imperiosa de escrever sobre este ou aquele assunto de uma vida dividida com os outros. Rilke, o grande poeta alemão, dizia ao aprendiz de poesia que só se deve escrever por necessidade. Creio que é exatamente isso. Dar resposta àquilo que urge.
Fernando Andrade – Sempre achei que tua escrita parte de uma base filosófica cuja reflexão abarca ciência e formações humanísticas. Neste livro cuja ficção parte de relações afetivas, ainda vemos certo pendor reflexivo. Comente.
Guilherme Preger – É provável. O conto A avatar, que dá título ao livro, vai por esse caminho enviesado, traçado entre a ciência e o imaginário. Mas é preciso lembrar que minha obra Fábulas da Ciência (2021) é sobre a função da ficção na ciência. Uma das minhas teses preferidas defende que a ficção está em todos os lugares do saber: na ciência, na economia, na política, na vida comum. A literatura não tem um monopólio sobre a ficção. Eu diria apenas que a literatura precisa ter um olhar mais complexo para a questão ficcional. O verdadeiro objeto da literatura é a própria ficção. A literatura é a ficção da ficção. E o que é o fictício afinal? Um filósofo que eu gosto, o jesuíta Michel de Certeau, a respeito do uso do relato ficcional no discurso histórico, escreveu que a ficção é o discurso do outro. Ficcionar é construir a alteridade. Costumo fazer esse comentário: certos autores escolheram a autoficção, eu enveredei pela alter-ficção. Mesmo quando os contos abordam passagens autobiográficas, é sempre sobre um outro, um alter ego. As relações afetivas, nesse cenário, são aquelas que nos ligam ao outro e não existe o social sem esta relação.
Fernando Andrade – A mulher é um grande tema por trás dos momentos dúbios masculinos. E você escreve sem qualquer tipo de estereótipo de gênero. O gênero atrapalha a escrita. Comente.
Guilherme Preger – Você tem razão: o gênero procura formatar a alteridade, estereotipá-la. Personagens como Darkenergy e Lux estão na fronteira indefinível do gênero. Eu quis fugir do tema do “Enigma Mulher”. No entanto, foi um risco que eu corri: ao escrever sobre mulheres pelo prisma da alteridade singular, como um pêndulo a questão do gênero retornou. Em minha defesa eu diria que mesmo para as mulheres, a outra mulher é uma alteridade irredutível. Interessa-me sempre não este ou aquela personagem, mas a relação, o que está entre os corpos sexuais. Como disse anteriormente, meus contos são sobre relações. Assim, em A Paixão de H.H., ou em Uma Diva aos treze, o que se conta é a relação de uma mulher com a figura paterna. Há vários contos sobre casais, e estes trazem as tensões que afloram nas relações e que justamente deslocam a questão de gênero (ou a tornam mais ambígua). Sobre a dubiedade masculina, que está realmente presente em alguns contos, eu diria que talvez a masculinidade esteja perdida (ou se ache perdida) em algum lugar entre a identidade e alteridade, mas que isso não seja exatamente uma situação ruim. Pode ser a solução para evitar os estereótipos de gênero.
Fernando Andrade – Toda escrita é política. Disserte.
Guilherme Preger – Bem, há contos estritamente políticos em meu livro, tais como a série Brasas, ou O Alvo e O Pacto, mas estou entendendo que a pergunta tem um aspecto mais geral. Hoje tenho evitado essas afirmações mais categóricas, até porque estamos vivendo numa sociedade audiovisual e digital em que a escrita já não tem o papel tão fundante como anteriormente. Por isso responderei a respeito desta obra A Avatar, em particular. Eu diria o seguinte: que tudo o que escrevo em minha produção poética, ensaística e ficcional, segue aquele norte que o poeta Carlos Drummond de Andrade delineou em seu poema Mãos Dadas, quando ele diz que estamos “presos à vida” e que “Entre eles [os companheiros], considero a enorme realidade”. E conclui ao final: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Esta é para mim a exigência ética (política?) de todo escritor contemporâneo: produzir uma obra cujo horizonte de sentido é a vida presente. Afinal de contas, para um escritor, seus “companheiros” são seus leitores. E diante de nós, no presente, existe essa “enorme realidade” que apenas de mãos dadas poderemos enfrentar.
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