Três poemas de Marcus Vinicius Quiroga

 

 

 

 

PARÁBOLA DE RADUAN NASSAR

Em pouco mais de 280 páginas
de terra cultivável,
exerceu o oficio.

Uma parte do discurso
caiu à beira da estrada
e vieram os críticos e a devoraram.

Outra parte caiu entre as pedras
do esquecimento
e a sombra a escondeu de si mesma.

Outra parte caiu entre os arames
e a cerca eletrificada,
e a noite pôs-lhe um capuz e levou-a clandestinamente.

Outra ainda caiu em bom deserto
e deu fruto:
grãos que renderam cem; outros, sessenta; e outros, trinta silêncios.

 

 

BACK TO BECKETT

Dois vagabundos
no meio do nada dialogam,
mas sabem que esta é apenas
a parte
que lhes cabe.
Estão sós.

E não há como ser de outra forma.
Ao redor, o vazio.
Uma árvore sem frutos.

Um diz frases
e o outro não as escuta.
Esta é a metáfora.

Talvez algo aconteça
e haja um mundo sem sombras.
Mas tudo é muito incerto.

Vladimir, Estragon ou Beckett.
Que diferença faz o codinome?

No palco tudo se repete,
como se a peça
não saísse do lugar.

Ao final, cada um se ausenta
com seu silêncio
debaixo do braço.

Há algo do lado de fora?
Esta é a metáfora.

 

 

LIÇÃO DE MORANDI

Nas garrafas com gargalo
à Modigliani,
ele esvazia a pintura.

Nas naturezas-mortas
mais simples, mais baças,
vaza o conteúdo.

A algo (não familiar),
além da aparência,
as formas aludem.

Tais objetos
sobre a mesa, intransigentes,
decerto pensam o mundo.

E sempre mais vários
se repetem,
como um som que a si mesmo modula.

Na leitura figurativa,
estas garrafas não seriam homens,
mas seus vultos.

 

 

 

MARCUS VINICIUS QUIROGA: Poeta, contista, crítico e ensaísta; doutor em Literatura Brasileira; membro da Academia Carioca de Letras e do PEN Clube de Brasil; professor de oficina literária; com 24 livros publicados; com prêmios da CBL (Jabuti), da FBN, da UBE (RJ e SP) e das cidades de Belo Horizonte, Recife e Juiz de Fora, entre outros. Colaborador de diversas publicações literárias, como o  Caderno Ideias (JB), o jornal Rioletras e as revistas Renovarte e da Academia Brasileira de Letras