PASSEIO; exercício de estilo
Saí caminhando Tomei a avenida que tem nome de rio: Paraná.
O sol fervia no horizonte ao lado, embora não houvesse horizonte. Só asfalto. Que fumegava um pouco. Por vezes, lembranças no caminho. Quando, eis que cheguei nesta cidade. Este era um lugar muito novo, mas velho como tudo que existe. Agora olho e me pergunto “por quê?”. Por que eu deveria ter ficado aqui e fiquei?
Os carros continuam a passar, mas são poucos, é domingo.
Ando e vejo árvores tangidas pelo vento. Isto é sempre assim. Aqui é assim. As árvores e as árvores. Na avenida meio vazia, um cheiro de breque. Freada brusca e tudo volta ao silêncio. Eu não devia ter ficado aqui. Mas, quando a gente vai enterrando as raízes, não tem mais como arrancá-las. Nesse tempo em que estou dentro aqui. Pude conhecer Paris. Que dor! Arrancamento de raízes. Havia dias de dançar sozinho. Falar às paredes. Andar sempre sozinho. A Cidade Luz luzia uma luz artificial e sem alegria. Me disse que viria, mas demorou. Depois de seis meses, ela chegou. Paris não era mais uma festa, fim de primavera, algo se desencaixou.
Paris não tinha som. Carros abafados, nem cochichos. Esculturas por toda a parte. As Três Graças desnudando-se no Jardim.
Um universo estranho.
Continuo pela avenida que tem nome de rio. Silenciosa. Vejo a catedral se aproximando. É um cone, coño! Lembro das blasfêmias espanholas “Me cago em Dios”. “Me cago em todo eso y em Dios!” Que coisa este cone estará fazendo aí, como uma casca de sorvete invertida e atirada ao chão? Plantada firmemente. Um arquiteto do sul a construiu. Em torno dela um largo gramado e atrás um ponto de prostituição. Às oito da noite carros passam levam e trazem essas mulheres. Vi, certa vez, três delas. Mal tinham catorze anos completos. Estavam sendo trazidas de volta por seu cliente satisfeito. No livro de Freud, há um personagem que não pode se conter e, ao rezar, tem impulso de dizer “Deus merda! Deus merda!”.
Quando vim para cá havia já muito asfalto, mais que calçadas. Fumegava nas horas quentes do dia. O passeio era terra grudenta. Foi feliz a minha vinda, marcada também por afastamentos.
Entro na igreja. Ela é muito alta. O espaço cônico é redondo. Onde é o centro? Que coisa estranha somos nós que temos que marcar um centro. E no centro está algo que irradia em nós? Uma energia? Uma benção? É Deus? Vi na Bulgária uma catedral ortodoxa gigante. Dentro havia vários centros marcados desde o teto. Em cada um desses centros, um fiel rezando em direção aos céus. Deus há-de. Um cone é como uma pirâmide, há um centro que aponta para um ponto. Esse ponto é Deus?
Sento-me num dos bancos. Deveria pedir perdão a Deus e aos homens; não tenho coragem. O que fiz, meu Deus? O que fiz que esta culpa me persegue desde sempre? Culpa ancestral. Imemorial.
Vejo um Cristo pintado diretamente na parede de concreto. Atrás do altar. Quadro gigante. Mas como tantos Cristos, ele sofre. Sofre sua dor e a dor de todos. Seu sofrimento não alivia o meu. Aumenta. Passo a sofrer por sua dor. Mel Gibson retrata um Jesus dobrado sob dezenas, senão centenas ou mesmo milhares de lategaços, como ninguém jamais suportaria sem ao menos morrer. O Mestre chora. Em aramaico se queixa: Eli, Eli lama sabactâni, por que me desamparaste, pai? É sua morte vitoriosa? Vejo-me aí. Não na vitória, no desamparo.
E essa figura entranhada na parede de pedra da moderna catedral tem os braços muito abertos e muito longos, como acolhendo-nos de nosso abandono no seu próprio martírio. Isso não é tudo. Desço do banco, ajoelho e grito. Grito-desespero; grito-terror; grito-peito-aberto. “Meu Deus, eu grito de dia, e não me respondes, de noite, e nunca tenho descanso”, “apesar das palavras de meu rugir?” (Salmo 22).
O grito atrai gente. Lá do fundo da igreja. Vem um senhor. Pôr ordem. O que é isso, o que está acontecendo? Loucura. Só muitos anos depois soube que o meu grito era um grito imaginário. Embora, de fato, houvesse gritado, não havia grito.
Saio
Desapareço. Reapareço na rua de baixo, no parque florestal. Já não sou mais presa do desespero. É um parque úmido. Tem um antigo trem à vapor postado na entrada e um lago no fundo, do lado de baixo.
Fico do lado de cima. Penso no grito. Lembro-me do quadro de Munch, tão famoso e já clichê. Mas não há clichê que possa conter tamanha aflição. Vejo uma nuvem de insetos e dois pássaros, um de cada lado, caçando e devorando-os. Há no chão um cheiro de manga. Natureza se decompondo e se alimentando no seu gosto bárbaro. Natureza absurda. Mas é a única. É única e está em nós. A natureza está nos prédios de concreto. Deles, podemos saltar no vazio.
Natureza viva, natureza morta, natureza clean. Eu jamais gritei naquela igreja. Sinto ainda o pulmão abafado e o remorso vivo.
Que culpa é essa que me ronda os sonhos e os passos? Dolorosa humilhação! Que vergonha é essa que me segue os pensamentos, de tal forma que só Cristo morto pode ser o emblema?
Mas, se Deus está morto, o que faz deste meu pesar heresia?
Escolha a sua culpa. Todos os anos o Senhor morre na cordilheira dos Andes. Nos pueblitos e nas grandes cidades. Se Ele está morto, ainda vai ressuscitar. Mas não o fez ainda. Entre a sexta da dor e o domingo do pasmo, estamos todos livres. Tudo pode, porque o Senhor ainda jaz morto. Imensa festa nas montanhas. Eu não lhe disse? Durante essa festa praticamos o incesto. Numa dessas aldeias, há um relógio contando os segundos, para que se aproveite bem o fim de semana em que nada é pecado. Glorioso. Mas, é preciso muita atenção, pois já pensaste se Ele ressuscita e estás em grande pecado? Quando, então, Jesus ressuscita, já não se pode. É preciso muita seriedade. Sejamos graves.
Vou descendo lentamente até o lago. A descida é calma e sombreada. Folhas secas; decomposição. No lago. Pedalinhos. Crianças? Adultos são crianças tristes. É tão fresco aqui! Há gritos de um lado e silêncio de outro. O silencio é divino. Silêncio é quando não estamos; restam as coisas sem dono, como quando se morre, ficam órfãs. Mas, o silêncio não está só. Deus o acompanha. Deus faz o que pode. Deus não é obrigado à .
A prova da existência de Deus: rolar muita tinta; escrever muita coisa. Idade Média, sábios e padres. Deus primeira causa; portanto existe. Se existimos, Deus existe, pois fomos feitos à sua imagem e semelhança. Pobres de nós, que não podemos nos causar. A nós mesmos.
Somos a causa de nossa morte? Meu jovem amigo foi à uma discoteca. Discutiu.
Brigou. Saiu com seu carro. No meio do caminho, parou. Semáforo. Uma moto. Alguém lhe enfiou uma bala na cabeça Que triste para os jovens essa ânsia de morrer.
O lago do parque tem águas mansas. Barcos e pedalinhos. Três jovens morreram nesta noite. Entraram pela cerca furada. Foram nadar. Nada. Não souberam. Foram recuperados, mas suas almas ficaram ali jazendo, no fundo do manso lago.
Cena difícil de contemplar. Outrora vi afogamentos na praia. Os corpos entregavam suas almas e nos deixavam pensativos, olhando ao longe. E vi aquelas pessoas com olhar pensativo sobre o cadáve estendido na areia. O que têm esses corpos sem vida que nos atraem? Estranha curiosidade. Um estranho magnetismo nos puxa para não se sabe onde.
O primeiro lugar que me mostraram nesta cidade foi esse parque. Suas árvores são seculares. Curiosa mistura de morte e vida, muita vida. Festival de sombra e luz.
Pensar na vida dói, para ela só há um fim: o fim.
“Cuida que o coração não saiba
Que o universo é apenas uma falta
Na pureza do não ser”
Saio Ganho a rua. Desapareço novamente na paisagem. Paisagem
de pontos
infinitos e
coloridos bailando
ao sabor do vento.
Reapareço no Shopping, que não está longe. Shopping é uma ultra realidade. Recriação. É um recanto calmo – calmo? – em meio à agressão da cidade. Olho a escada rolante Cheia de adolescentes. Vejo apenas suas cabeças sem corpo. Um fila de esferas subindo na diagonal. Ambiente se desfaz, desrealiza-se. Tudo muito etéreo. Também vou pela escada. Em cima, o cinema. Do lado, o café. As pessoas estão pálidas. A luz é mortiça. Este lugar é o mesmo. Tudo como sempre. Os mesmos pontos animam o ambiente. Embaixo a livraria. Por que não suportamos ir aos mesmos lugares? Aos de sempre? Os mesmos rostos? É que somos mortais; a repetição nos envenena. Que Deus me dê a morte que é minha e não outra!
Li em algum lugar. Uma moça norte-americana faz sessões de psicanálise com sua terapeuta norte-americana. Anos 60. Vive assombrada. Assombrada pela experiência de sua mãe ainda jovem: campo de concentração. Birkenau. Polônia. Chega ao campo, sua mãe. Ainda jovem. Toda a família. Trauma. Impõe-se o cenário desolado. Na entrada, chega também, imagine, uma carga de crianças. Vagão de trem. Crianças vivas? Mortas? Não sei. São lançadas à uma fogueira, que as queima estrepitosamente. A mãe da filha vê aquilo. Aproxima-se do muro e bate propositalmente sua própria cabeça contra ele. Pensa: meu pai dizia que tudo na vida tem um propósito. A vida não tem sentido, diz a analista americana. Anos depois.
A morte não tem dono. O sentido da vida é a morte.
Fastio. Desço as escadas. Porta automática. Rua
Sigo. Para casa. Direção inversa. Avenida com nome de santo. São Paulo.
Paulo de Tarso quer que as mulheres se calem na Igreja.
Os
infinitos
pontos da
paisagem
Voltam a se
animar.
Entro no supermercado. Vou até a área do açougue. Dos frios? Dos enlatados? Dos biscoitos? Fico parado. Examino. Uma mulher estaciona o carrinho a meu lado. Outra vem. Faz o mesmo; outra atrás; outra então. Estupidamente, vejo-me cercado por todos os carrinhos. Não posso sair. Coincidência? Olhei para uma mulher. E para outra. E outra. Sorriam e o faziam com dezenas e dezenas de dentes.
Os sons. Confusos. Eram risadas? Acordes desafinados? Guinchos? Aço contra aço?
Me vi apavorado. Me vi de fora. Lá estava eu de fato apavorado, mas imóvel. Imobilizado.
Inesperadamente, uma das senhoras que me cercavam com seus carrinhos deu-se conta da minha extrema solidão naquele cerco bizarro. Retirou-se. Lentamente. Outras senhoras também se deram conta. Foram também retirando vagarosamente seus carrinhos de compra.
Minha angústia foi lentamente cedendo. Também? Sim.
Ao se aperceberem de tão ridículo evento, todos começaram a rir e o evento desapareceu, dando lugar a outros e a outros e a tantos outros acontecimentos, que são, enfim, o tecido da nossa vida.
Saio. Desapareço. Desfazem-se
os pontos
da
paisagem. Fecham-se cortinas. Desponta a vida. A morte? Mas, o que é a morte, a vida, a mort, a vid? A mor, a vi? A m, a v. Fim
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto é um paulista radicado no Paraná. Tem 60 anos, é psicólogo e professor universitário. Conta que passou a vida toda escrevendo. Com 20 anos escrevia contos, dos 30 aos 60 produzia livros acadêmicos de Psicologia, cinco publicados e um no prelo. com um deles, foi finalista no Prêmio Jabuti, área de Psicologia.
Aos 60 anos, aposentou-se, cumprindo com isso o maior sonho de sua vida: aposentar-se. Voltou aos contos e, portanto, não para de escrever.
Além de trabalhar, viajou mundo afora. Conheceu muitos países e morou dois anos na França. Isso é bom material para crônicas, diz-nos ele.
Conta-nos, finalmente, que tem o mau hábito de ter todos os seus sonhos realizados e também de mentir.
“a repetição nos envenena” ISSO MESMO e “o sentido da vida é a morte”. Sinceramente, nem mesmo a morte dá sentido à vida… Mas valeu a tentativa.
“Nem mesmo a morte dá sentido à vida” – gostei desta frase.