A busca da linguagem perdida em Haikuazes[1]
Valmir de Souza [2]
Descrever poesia é como tirar o sumo da fruta. Aqui espero não fazê-lo e dialogar com os poemas desse poeta paranaense de São Paulo e do mundo, Hamilton Faria, que ressoa em sua poética o lema de Mallarmé: mudar a língua equivale a mudar o mundo. Mas ele também “incendeia” ou resplandece o verbo, como Rimbaud.
Depois de Cidades do Ser, Encântaros e outros, o poeta “revolta” com esses Haikuazes, fazendo “quase” Haikais, mas que são plenos e totais. E nesse livro enfrenta os dilemas da linguagem poética quanto a ela mesma e quanto ao estado do mundo.
Na busca de uma linguagem adâmica de renomeação dos seres, o poeta se “afunda” na ingenuidade, como diz na “Reza” inicial: “Entre gênios e engenhos / Concede-me, ó Deus, / a pureza do ingênuo.”
O seu engenho poético engendra a busca de forma organizada, pensada no âmbito da pureza do dizer não estabelecido, “fora do poder”.
Sete são as divisões do livro. No primeiro destacamento da linguagem (Doze Fragmentos de haivida), o poeta comenta a vida e o tempo. Aí vemos: “uma vida viva / cabelos negros brancos / inauguro-os.”
E temos: “haitempo haivida / alegres frutas de infância / eu permaneci”. Eis o tom alegre do Haimilton diante do espetáculo da vida em desenvolvimento. Parafraseando Merleau-Ponty, diríamos que essa poesia precisava dessa vida.
A segunda p’arte do livro (Amares), destaca o amar no plural, traduzindo um tema nada banal para o poeta. Em “Perder-se” diz que não pode perder nunca: “Te perder sempre / Não posso / Te perder nunca”. O segundo verso se dirige ao primeiro e ao terceiro, o que mostra a articulação da linguagem, nada sendo desconectado.
Em “Sacral”, a consagração do amor – “Busca o sagrado / em tua ânsia / de amar o amado”. Em “Ânima”, o princípio feminino onírico se transforma em alma: “A minha alma / é uma mulher / que sonha”. E em “O casamento”, a união como singularidade infindável do ser: “Dádiva infinita / A escolha do par / para a vida ímpar”. As pequenas ressonâncias rímicas em “i” e em “ar” – infinita, par, ímpar – , sugerem o tom incisivo da declaração do amor e sua continuidade.
No terceiro gesto (Dom), em “Transcendência”, o poeta adentra os mistérios do viver, com a mística transcrita na ação poética: “Mistérios / abrem portas / à existência”.
Sente-se também o eco de uma das poetisas preferidas do poeta, Cecília Meireles, quando esta pergunta em “Retrato”: “Em que espelho ficou perdida / a minha face?”. Este eco está em “Pergunta”, onde se lê: “Espelho me confesse: / que sombra habita / minha face?”.
Em alguns momentos, a referência mística aflora claramente como em “Krishna” e “Daime”, textos-tradução de um estado espiritual de ser.
No quarto elemento (Crisálidas), em “O desvidente”: “Poetas no poder? / Não conseguem ver”. Sente-se aí a escuta política na poesia, e a dúvida não se resolve, pois fica no ar se são os poetas ou outros que não conseguem vê-los como “animal político”. Veja-se “O planejador”: “Vou fazer um plano / que devolva aos homens / o sentido do humano”.
Aí a questão humana se torna o centro da reflexão poética e mostra a inquietação com os sentidos da humanidade. Observa-se também a ação do poeta e artista que articula políticas de cultura pública em vários níveis e planos. O texto traz nexos com a sociedade e com a política, mas dando um impulso criativo à lógica seca das relações de poder pautadas por interesses consagradores do já-dito e vivido. Eis a contribuição da poesia ao “mundo caduco” (Drummond): injetar ânimo nas águas paradas da cultura.
Na quinta flor (Florais), o mundo orgânico dialoga com o mundo “inseto”, em “Floral”, onde se lê: “Na floreira da cozinha / o gerânio espanta a aranha / que se avizinha”. Em “Contemplação”, mais uma pétala dessa parte-flor, “amar manacás” veste o desejo do poeta que prefere não trabalhar. Se em “Primaveril”, o aroma da flor e o riso dos guris se colorem da mesma substância, em “Primavera” o sentimento-amor adquire cheiro.
As referências do poeta são tecidas e escritas. A referência ao tecer o pano da “Rendeira” que constrói um mundo abre um nexo com o fazer poético que tece o texto-mundo. Já no título “Quintanares” se encontra o diálogo poético com outra referência de profunda simplicidade, Mário Quintana.
E, fechando o mundo-natureza-viva, “Outono” sintetiza o deliciar-se com a memória e com o gosto-paladar, “Pitango-me”, dizendo com isso: saborear a pitanga de forma a transformar-se em natureza, e ao mesmo tempo, lembra o vocábulo “tango” no meio da palavra. Claro que a síntese da linguagem traz uma capacidade de afirmação inusitada e a concentração, prática própria da poesia, não prende o verbo, ao contrário, abre possibilidades inauditas.
No sexto sentido do livro (Vita) o poeta contempla a passagem do tempo e o vislumbrar de novos horizontes e possibilidades de uma vida poética. “No espelho”: “Anos desfolham-se em rosto suave / Agora te entendo / beleza da idade”. O avançar dos anos não reduz a vida, mas amplia o olhar interior em novas descobertas do ser aqui e agora.
Na sétima visão (Hais) o texto “encurtece” sem deixar a densidade de lado. Um dos que gostei, “Vida”: “Esta soma de cactos / Plena de águas!”. Em algo intratável no plural (“cactos”) com algo movente (“água”), está a vida. Outro poema que fala alto, “Sabedoria”: “O real mora / na utopia”. Aí está o segredo da poética do livro: que o real não é só o visível, mas mora no invisível. Como diz Murilo Mendes: “O invisível não é irreal, é o real que não é visto”.
Enfim, uma poética que propõe novos mundos e olhares revigorantes da vida. A lógica que preside a poética de Hamilton Faria é a do deslocamento da linha reta cartesiana, pois os valores da mercadoria como único horizonte de vida e morte, predominantes em nosso cotidiano, são atacados poeticamente nesses textos que buscam o reencantamento do mundo, mas que também procuram a linguagem que esqueceu de nomear o maravilhamento das coisas.
A revitalização da linguagem acompanha o gesto inaugural do fazer poético, deslocando o olhar para que as coisas sejam vistas com ênfase criativa e não mais no ramerrão produtivista do mundo atual. Escrita poeticamente fecunda, a poesia desse poeta se renova a cada leitura, e em sua leveza carrega a densidade do pensamento. Essa palavra-cultura se coloca mais no universo das artes instituintes como possibilidade de reinvenção do estar e do ser no mundo. Um amém poético a esse livro.
[1] Texto publicado no livro Cultura e literatura: diálogos. São Paulo: Ed. do Autor, 2008.
[2] Doutor em Letras (Teoria literária e Literatura Comparada), Professor Universitário e Pesquisador de Cultura, Literatura e Políticas Culturais, defendeu a Tese Murilo Mendes: da história satírica à memória contemplativa. (2006, USP). Coordenador da Área de Cultura do Instituto Pólis.
Valmir de Souza é professor, ensaísta e pesquisador. Possui graduação e licenciatura em Letras (Inglês e Português) pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira (1985). Atualmente leciona na Universidade Guarulhos e FIG-Unimesp. Fez Mestrado e Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (1999; 2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade de Guarulhos, professor doutor da UNIMESP/Faculdades Integradas de Guarulhos. Tem experiência no ensino superior na área de Letras, Cultura e História da Educação. Autor do livro "Cultura e literatura: diálogos" e de vários artigos e ensaios sobre os temas de política cultural, literatura, cultura e educação. Coordenador e organizador de diversas publicações nas áreas de Cultura, Educação. Assessor e professor no Programa de Formação "Jovens Monitores Culturais (Instituto Pólis e Secretaria Municipal de Cultura de SP, 2015-2017). Atuou como pesquisador no Programa de Pós-Doutorado de Gestão Pública da EACH/USP, com o Projeto "A política de Cidadania Cultural: entre a democratização da cultura e a democracia cultural" (2013-2014) e também no Projeto Revisão das Políticas Culturais, junto ao GPoPAI/EACH.
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