O tempo cristalizado de Antonio Cicero, por Fabiano Fernandes Garcez

 

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Porventura, Antonio Cicero

 

 

O tempo cristalizado de Antonio Cicero

Por Fabiano Fernandes Garcez
 
Antonio Cicero é poeta, ensaísta, letrista e filósofo. Escreve poesia desde criança, virou letrista quando sua irmã, a cantora Marina Lima, pegou um de seus poemas e musicou. Publicou os ensaios filosóficos: O mundo desde o fim, Francisco Alves, 1995, Finalidades sem fim,Companhia das Letras, 2005 que foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria Teoria / Crítica literária e Poesia e filosofia, Civilização Brasileira, 2012 e os livros de poesia Guardar, Record, 1996, vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, na categoria estreante. A cidade e os livros, Record, 2002, Livro de sombras: pintura, cinema e poesia (com o artista plástico Luciano Figueiredo), +2 Editora, 2010. Além de publicar um livro de entrevistas organizado por Arthur Nogueira, Antonio Cicero por Antonio Cicero, 2012 e lançar um CD de poemas com o mesmo título.
Em 2012 lança, seu terceiro livro de poesia Porventura. Poesia e filosofia se misturam na vida de Antonio Cicero, porém para aqueles que acham que elas podem ser misturar, em Poesia e Filosofia, cap. 5. A filosofia no poema, Antonio Cicero avisa que:
 
(…) o valor de uma obra de filosofia enquanto filosofia depende em grande parte da originalidade das teses filosóficas que ela afirma; o valor de uma obra de poesia enquanto poesia não depende da originalidade das teses filosóficas que ela afirma.
 
Cicero é um grande artífice das palavras, sua poesia é concisa, racional, tudo é justo, simetricamente perfeito, porém sem ser hermético e perder o teor comunicativo. Utiliza conscientemente, além do rigor gramatical, os recursos poéticos: métrica, rimas, sobretudo as internas ou a toantes, assonâncias, aliterações, tudo isso proporciona muita musicalidade em seus versos, – o poeta é um ótimo declamador-, o que traz certo tom coloquial, o vocabulário é aparentemente simples, – o mais desavisado pode até tropeçar em uma ou outra palavra dura, áspera, por vezes, nada poética –, explora, como poucos, a polissemia das palavras. Veja o poema Aparências:
 
Não sou mais tolo não mais me queixo:
enganassem-me mais desenganassem-me mais
mais rápidas mais vorazes mais arrebatadoras
mais volúveis mais voláteis
mais aparecessem para mim e desaparecessem
mais velassem mais desvelassem mais revelassem mais re-
velassem
mais
 
eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.
 
Vejam como a repetição do termo mais dá musicalidade ao verso, que é quebrada com os pares: enganassem-me/desenganassem-me, parecessem/desaparecessem, velassem/ desvelassem. A musicalidade não é só quebrada com o uso dessas palavras, porém o que mais dificulta a leitura do poema é que o fim da frase não coincide com quebra do verso, talvez se estes versos fossem escritos dessa maneira (mais aparecessem para mim e desaparecessem/ mais velassem mais desvelassem/ mais revelassem/ mais revelassem mais)sua leitura fosse mais fluída, porém o poema perderia a polissemia do verso velassem, após ser separado do prefixo re, final do verso anterior, o que repete o próprio verbo velar, início do verso anterior.
Em Porventura não há, aparentemente, nenhum arrojo estético, com exceção aos poemas Síntese e Fedra que estão em caixa alta os outros estão centralizados na página e, predominantemente, em apenas uma estrofe,
O advérbio porventura que dá título ao livro é sinônimo de acaso, possivelmente, quiçá e talvez, assim o plano hipotético inunda cada poema, trazendo como tema central do livro o tempo, ora o presente, de olho no cotidiano urbano As flores na cidade, Presente e Meio-fio:
 
Domingo à noite, ao cinema,
à comédia americana
do Roxy, em Copacabana: (..)
 
Mas, na Barão de Ipanema
com a Domingos Ferreira,
eis que fazemos besteira,
a um quarteirão do cinema:
é que, à procura de vaga,
não vemos que vem um carro
na transversal, e o esbarro
não é grande mas estraga
os planos. Resta esperar
ao meio-fio a perícia.
Mas a noite, com a malícia
e a fluidez de um jaguar,
nada espera. Da Avenida
Atlântica, a maresia,
cio noturno, alicia
para outras eras da vida.
ou no passado, por vezes, pessoal Palavras Aladas:
Os juramentos que nos juramos
Entrelaçados naquela cama
Seriam traídos se lembrados hoje
(…)
 
Esqueçamo-las
Pois dentre os atos da língua
Houve outros mais convincentes
E ardentes sobre os lençóis
(…)
 
ou coletivo Ícaro, último poema do livro:
Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar
Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre
Adeus riquezas de Átalo
vinhos do Mássico
coroas de louro
flautas e liras
Adeus cabeça nas estrelas,
Adeus amigos
mulheres
efebos
Adeus sol:
Ouro algum permanece.
 
Dessa forma o tempo não é apenas tema para os poemas, assim como eles não são mera representação de uma possível realidade, mas a busca pela cristalização do efêmero, veja o belíssimo poema Desejo.
Só o desejo não passa
e só deseja o que passa
e passo meu tempo inteiro
a enfrentar um só problema:
ao menos no meu poema
agarrar o passageiro.
 
A tradição literária ocidental é muito significativa e presente na obra de Cicero, para olhos menos atentos pode ser notado em diversas referências em Porventura, como em Auden e Yeats ou nas intertextualidades com Camões Diamante, ou Drummond Na Praia:
Na praia — parece que foi ontem —
ficávamos dentro d’água eu,
Roberto, Ibinho, Roberto Fontes
e Vinícius, a água era um céu,
e voávamos nas ondas trans-
parentes, deslizantes, do azul
mais profundo do fundo ciã
do oceano Atlântico do sul.
Mas era outro século: Roberto
morreu, morreu Vinícius, Roberto
Fontes quase nunca vejo, e Ibinho
casou e mudou. Já não procuro
o azul. Os mares em que mergulho
são os homéricos, cor de vinho.
 
Note que os versos (Mas era outro século: Roberto/morreu, morreu Vinícius, Roberto/Fontes quase nunca vejo, e Ibinho/casou e mudou.) tem extrema relação com o famoso poema Quadrilha, do poeta mineiro:
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
 
Em Blackout a intertextualidade é com o português Fernando Pessoa:
Passo a noite a escrever
Do lado de lá da rua
poderia alguém me ver,
daquele prédio às escuras,
em frente ao meu, e mais alto.
Que voyeur me espiaria?
De interessante, só faço
escrever. Ele veria
decerto a parte traseira
do computador; talvez,
daquela outra janela,
ele visse, de viés,
o lado esquerdo da minha
face de per fi l; jamais
entretanto enxergaria
certos versos de cristal
líquido que, mal secreto
com o sal do meu suor,
já anunciam segredos
só meus e de algum leitor
que partilhará comigo
o paraíso e o desterro,
o pranto que vem do riso,
o acerto que vem do erro.
Disso tudo, meu vizinho
nem de longe desconfia.
Mas e se ele, tendo lido
meus lábios, que pronunciam
o que na tela está escrito,
percebe-se desterrado
não só do meu paraíso:
do meu desterro, coitado?
E se ele a tudo atentar
e por inveja e recalque
me der um tiro de lá?
Melhor fechar o blackout.
Com versos brancos de sete sílabas, redondilha maior, o poema é construído a partir da percepção do eu poético que ao escrever vê a possibilidade ser visto, em seu quarto, a ler em voz alta o poema em construção, por alguém de fora, da rua ou outro apartamento, e esse observador sentir inveja ou recalque e acabar por lhe dar um tiro, assim o poeta encerra o poema fechando a cortina. Em extremo oposto ao eu poético do poema Tabacaria, de Álvaro de Campos, heterônimo Fernando Pessoa, que está em seu quarto a observar o mundo pela janela, porém se sente sozinho e à parte dele (Janelas do meu quarto,/Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é/(E se soubessem quem é, o que saberiam?),/Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,/Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,) o eu poético de Blackout é o centro das atenções, que mesmo sozinho em seu quarto ainda recebe atenção a ponto de incomodar alguém.
O ato poético para Cicero é desnudamento, por isso ser visto em pleno ato da escrita, causa no eu poético excitação, pois é na escrita que o oculto se revela, se mostra, veja o poema Poema:
 
Segredo não é, conquanto oculto;
mas onde oculto, se o manifesta
cada verso seu, cada vocábulo,
casa sílaba cada fonema?
 
Para o leitor, no entanto, o poema também é revelação, como também ocorre em Muro, poema que estava no projeto “Poesia em Concreto” da Mostra Sesc de Artes de 2008:
 
E se o poema opaco feito muro
te fizer sonhar noites em claro?
E se justo o poema mais obscuro
te resplandecer mais que o mais claro?
 
Se a poesia contemporânea busca sacralizar o banal e banalizar o sacro, a poesia de Antonio Cicero é recheada de referências a mitologia grega que funciona como arquétipo do homem contemporâneo, em palestra na Casa das Rosas, em 2013, o poeta afirma: “A Grécia é aqui”. Em inúmeros poemas de Porventura, como O poeta, O poeta lírico, O livro das sombras,Amazônia, Ícaro e 3h47 a mitologia Grega é o tema central, ou pelos menos referência: Veja, como exemplo, o poema Hora:
Para Alex Varella
Ajax não pede a Zeus pela própria
vida mas sim que levante as trevas
e a névoa a cobri-lo e aos seus em Troia:
que tenha chegado a sua hora
sim! Mas não obscura: antes à plena
luz do dia e sua justa glória.
 
Dois traços parecem ficar mais evidentes, em relação aos livros anteriores, o nilismo e o ateísmo, confira em:
 
Nihil
nada sustenta no nada esta terra
nada este ser que sou eu
nada a beleza que o dia descerra
nada a que a noite acendeu
nada esse sol que ilumina enquanto erra
pelas estradas do breu
nada o poema que breve se encerra
e que do nada nasceu
 
O fim da vida
Conheci da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.
 
VALEU
Vida, valeu.
Não te repetirei jamais.
 
Em Porventura Antonio Cicero se consolida como um dos grandes poetas contemporâneos e mesmo que sua pena discorra sobre o cotidiano contemporâneo ou o mitológico, prova que no tempo da falta de tempo, que o poema é monumento, Poesia e Filosofia, capaz de nos fazer resistir a perenidade de qualquer tempo.
 

 

Foto Fabiano Garcez 150x150 - O tempo cristalizado de Antonio Cicero, por Fabiano Fernandes Garcez

FABIANO FERNANDES GARCEZ
Nasceu em 3 de abril de 1976, na cidade de São Paulo. Formou-se em Letras, é professor de língua portuguesa, poeta, crítico literário, é autor dos livros Poesia se é que há (2008), Diálogos que ainda restam (2010), Rastros para um testamento (2012) e Em meio ao ruídos urbanos (2016), finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura 2017. Faz parte do grupo idealizador do Tragos e Papos, discussões literárias na Livraria Nobel (Guarulhos) e produtor do programa Sala de Leitura no Youtube.

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This Article Has 2 Comments
  1. dayse berenice espinosa griebeler Reply

    Muito bom, parabéns aos autores do texto.

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