Aqui/lá: a poesia desvela o enclave
Jean Narciso Bispo Moura
do outro lado
do outro lado da vitrine
o enclave apoia e sustenta o golpe
na república federativa de ali ao lado.
Enclave (Patuá, 2018) é o novo livro do poeta Marcelo Labes, é constituído por um longo poema, que se inicia falando da travessia oceânica de imigrantes que almejam aportar em terra brasiliana.
O autor utiliza-se da língua germânica, logo no início da sua composição poética, como mostrasse uma espécie de transliteração não de nomes, mais de coisas e pessoas para a terra recém-imigrada, há uma denúncia de usucapião antecipado, como visse por dentro do pensamento imigrante o orgulho e um peso heráldico invisível que vêem o mundo por uma lente eurocêntrica, de imediato, guardando alguma dessemelhança, lembrei-me do fato dos lusitanos solicitarem as mais confortáveis residências dos fluminenses, na vinda da família real e de sua grande comitiva ao Brasil, após fugirem da prometida invasão napoleônica.
As manifestações dos autóctones, suas ideias e costumes são vistos como coisas diminutas, o eu imigrante é visto no superlativo e o não-semelhante pela óptica do reducionismo, ocorrendo assim um choque cultural.
Pág. 19
III
A polka
Ignora
o samba
a polka
ignora
a bossa
A outra face do enclave mostra o indígena sendo morto por mera banalidade, o fato de cruzar a frente de um homem branco era suficiente para que um índio fosse assassinado, instalado ali um estado de barbárie contra o outro, que não tinha a sua humanidade reconhecida, devido a sua acentuada diferença fenotípica.
O discurso fortemente disseminado principalmente no período da ditadura, tem sectários no enclave, pondo o indivíduo alinhado ao ideário comunista como um elemento nocivo e de alta periculosidade. É nítida a fruição ideológica como controladora da mentalidade do residente no Enclave e um conservadorismo atroz, apelativo desvinculado de quaisquer raízes éticas, claro compondo um astucioso modelo de louvor e exaltação à matriz cultural. O logro para efeito de perpetuação embute no âmago e consciência imigrante.
Pág. 34
XV
conta carminha
por todo canto se falava
dum comunista que envenenaria
a caixa-d’ água
bebida
urinada
tratada
servida
em taças
de cristal
Numa estrofe adiante, a de XVI, observa-se nos descendentes da terra do enclave e no uso de gentílicos, ex: alemães, italianos e franceses etc, excetuam-se aos citados no livro os oriundos dos “Estados Unidos da América” que por questão geográfica, não faz fronteira com nenhum dos países exaltados. O adjetivo negado a outros povos, não pertencente pela herança sanguínea aos europeus e estadunidenses. Acentua-se na omissão e desatenção ao não europeu, o claríssimo intuito de subjugá-lo no imaginário nacionalista-enclavista e posicioná-lo numa nuvem de ostracismo.
Na estrofe XVIII, antecedida pelo depoimento de uma moradora do Vale do Itajaí, é uma da mais bela parte de todo o longo poema, o autor parece botar numa película a cena trágica vivida em 2008, e nela temos que correr para lugares seguros para não sermos apanhados pela lama e destruição descrita pelo poeta, há uma clara e latente aproximação da esperança, apresentando-se mais viva, por um pouco quase contrariando a sua antítese, mais o calcário enclave não cede lugar para a unidade. Labes diz:
“… se eu soubesse te dizer que encontrei a saída se houvesse se houvesse saída se pudéssemos sair se ousássemos tanto.”
Nota-se na repetição do termo ”houvesse”, um estado psicológico de inquietação no poeta que busca encontrar outro panorama por meio de uma saída; cena que mostra um terno e visível sonhar para que um dia o habitante do enclave, derribe a sua histórica barreira, lance abaixo o seu interior “Muro de Berlim”.
“tudo parece oblíquo deste lado da fronteira
os aviões decolam tão rápido
nas manhãs de segunda-feira
o som do despertador há de assustar os desavisados.”
Enfim o livro Enclave na voz do poeta Marcelo Labes, revela-se como uma obra poética viçosa e pulsante.
Jean Narciso Bispo Moura é poeta, autor de 6 (seis) livros de poemas, o mais recente “Retratos imateriais”, 2017, é também licenciado em ciências humanas, editor responsável pela Literatura e Fechadura – Revista Digital. Estreou em livro no início dos anos 2000, com o título A lupa e a sensibilidade, também é autor de 75 ossos para um esqueleto poético (2005); Excursão incógnita (2008); Memórias secas de um aqualouco e outros poemas (2011) e Psicologia do efêmero (2013).
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