O Fabuloso Canto do Pássaro de Pedra
Por Mateus Melo Machado
“Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada.
A linguagem é uma fonte de mal entendidos.”
– Antoine de Saint-Exupéry (O Pequeno Príncipe)
O poeta persa Faridud-Din Attar, séc. XII, em sua obra alegórica “A Linguagem dos Pássaros”, também traduzido como “Colóquio dos Pássaros”, nos conta sobre os obstáculos que o ser humano precisa enfrentar para se aproximar de Deus. Os pássaros do poeta persa saíram pelo mundo em uma jornada perigosa, atravessaram montanhas, vales e mares em busca do misterioso Simurg.
Embora essa busca não esteja clara na obra “Passos ao Redor do Teu Canto”, da poeta paulistana Maria Carolina de Bonis, a não ser como uma meta improvável, ouso dizer que sua busca se da na esfera humana, do relacionamento com o outro. Mas o outro é feito imagem e semelhança do Simurg, o deus dos Pássaros, na história do poeta. E o que é o Simurg senão o próprio Criador?
Segue a tradição do poeta andarilho, no caso de Maria Carolina, suas andanças também acontecem em meio à natureza, repetindo os mesmo ritos ancestrais; daí também que o enlace amoroso se pretende pagão. Mas o outro nunca está junto, mas sempre ao redor.
Há uma íntima ligação com os antepassados; são eles que indicam a rota. Isso é revelado em vários poemas, entre eles está Passos Fora do Dia – “As feridas cicatrizavam antes de imaginar os antepassados”. Longe de ser previsível, o passado toma posse do presente para juntos formarem o futuro, ainda que incerto, pois a memória da poeta se funde na memória do outro.
O sentimento estrangeiro acontece primeiramente entre corpo e alma – “Antes da gaveta aberta o outono quase-memória escorrendo por tudo que ainda não fui, mas é vida esse elo perdido” – escreve ela no poema Estrangeiro. Outros exemplos são facilmente encontrados em poemas como: Desterro, Mar de Ficção, Terra Espelhar e Andarilho, onde neste último ela termina com o verso: “desmanchando ao avesso pelo oco externo do mundo”. É o oco do sistema mundano que oprime o poeta, por isso ele se faz andarilho, exilado, se possível, da própria sombra da civilização moderna, é por isso também a aproximação da natureza.
Para os Pássaros Selvagens o mundo pode ser um “altar de sacrifícios”.
E a experiência cotidiana dos sentidos acontece em meio ao caos da linguagem. Buscando sempre outro lugar geográfico, mas não encontrando nenhum país ou cidade onde a poeta possa se encontrar, ela parte para uma viagem ainda mais insólita; a própria linguagem. Isso porque a poeta é uma estranha em terra estranha onde os desencontros na alma se cruzam. O longínquo geográfico é aqui. O longínquo interno, da alma, parece impossível de se alcançar. Só resta a geografia do corpo, onde a pele e a carne são limites alcançáveis e desejáveis.
Na geografia do corpo a poeta Maria Carolina encontra o seu canto – “Ontem dilatei alguns pássaros fora do coração. Ontem senti um país estrangeiro na pele” – registrado no poema Outro Templo ao Poema.
Ao ler os poemas deste livro intrigante, ouve-se o bater de asas. Fica iminente o vôo dos pássaros, das aves. Que ave seria o seu totem? Quem sabe o cisne e seu canto destinado a migrar longas distâncias? E permanece fiel quando se percebe sozinho. Mais uma vez o canto é solitário. A solidão da alma torna o pássaro petrificado.
Há pássaros que estão presos, engaiolados internamente. E são as prisões internas que impedem o vôo transcendente. O pássaro de pedra está ferido. Renascer é possível, desde que à beira dos próprios abismos, cujos nomes são: Vertigem & Aniquilação; vencer a vertigem do próprio desconhecido em nós e além de nós. E aniquilar o próprio ego diante do mistério do Sagrado.
Quando isso acontece, a ave se reconhece no olhar do Observador, da ave-divindade (Simurg). Por isso ela sonha com suas asas, sonha em voar além. Só assim ela rompe com o véu da ilusão do mundo, a começar pela confusão da linguagem e a impossibilidade de nos entendermos.
Poeta, romancista, músico e crítico literário.
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