A ordem natural
A história da minha vida?
Pergunta clichê essa, não?
Tudo bem, a história da minha vida começa antes mesmo de eu nascer. Não falo do momento em que meus pais se conheceram, ou no namoro improvável, ou no casamento dos sonhos. Nem naquela viagem de férias na Europa em que supostamente eles me conceberam. A minha história começa alguns minutinhos antes de eu nascer, ali mesmo na sala de parto. O procedimento era de risco, minha mãe tivera picos de pressão nas últimas semanas, e o médico fizera o alerta à equipe sobre as chances de sobrevivência de cada uma. Momento de tensão. A cesariana foi de fato uma cirurgia delicada, mas com sucesso. Pois então ela veio primeiro, e eis o início da minha história. Ela passou à minha frente, maior e mais pesada, encaixada na posição correta, uma explosão de choro, escandalosa chamando a atenção para si, como assim seria por toda a nossa vida. Dois minutos e cinquenta e sete segundos depois, eu nasci. Mirrada, pequena, magrinha e sem força para chorar direito. Por um momento, os médicos cogitaram minha internação na UTI neonatal, mas descartaram logo em seguida, viram que eu era um bebê normal. Foi a comparação com ela que trouxe essa preocupação. Três quilos, oitocentos e setenta e cinco gramas, quarenta e oito centímetros e meio. As medidas dela. A competição na barriga da minha mãe levou a uma disputa de quem se alimentava mais da placenta, de quem sugava a maior quantidade de nutrientes, um ensaio de selvageria pela sobrevivência. E por isso eu demorei alguns meses até ficar bem parecida com a minha irmã. Os rostos tinham contornos idênticos, meu corpo é que foi tomando a mesma forma do corpo dela aos poucos, antes de completarmos o primeiro ano juntas.
A preferência de papai e mamãe era indisfarçável. Ela foi a primeira a sorrir, a primeira a falar, a primeira a andar, a primeira a nascer os dentes da frente, tudo registrado naquele livro de memórias que se faz dos filhos. Ela sempre foi mais carinhosa, e eu mais seca. Ela sempre foi mais espirituosa, e eu mais protocolar. Ela sempre mais espontânea, eu mais programada.
Na escola, as notas altas eram dela, claro, primeira da turma, mesmo eu me esforçando ela conseguia me superar em todas as matérias. Com folga. A confiança que ela carregava se refletia no sorriso perfeito, enquanto eu esboçava curvas de canto de boca para esconder meus dentes envergonhados. Se fôssemos um livro, ela seria um belo e denso romance, um Tolstoi, e eu não passaria de um apanhado de palavras desconexas de um escritor medíocre. Se fôssemos uma música, ela seria uma sinfonia bem orquestrada, um Brahms, e eu não passaria de uma composição ruim. Se fôssemos um filme, ela seria uma película de alta resolução. Eu? Uma projeção manchada e inacabada. Se fôssemos uma cor, ela seria vários matizes ao mesmo tempo e eu, monocromia.
Eu estava lá no dia que deveria ter sido a minha virada. Eu estava lá quando ela caiu. Tínhamos nove anos. Por causa do seu exibicionismo, ela saltava e pisava sobre algumas pedras à beira do mar durante um final de semana na praia. O limo e as algas das pedras fizeram ela perder o equilíbrio e bater com a cabeça. A correria e a atenção que tiveram por ela eram previsíveis. Meus pais correram para acudi-la. O corte que abriu um talho próximo à sua bochecha iria deixar uma cicatriz. E como eu torci para ser a mais horrenda de todas as cicatrizes, profunda e aparente, uma formação do tipo queloide, distorcendo sua pele e tatuando seu rosto com feiura. Finalmente seríamos diferentes. A menina da cicatriz e a menina sem cicatriz. A minha virada. Porém, em poucas semanas, retirado o curativo, a incrível regeneração das suas células deixou apenas vestígio de um corte que jamais alguém poderia imaginar. Um traço fino e discreto. E que charme conferiu a ela! Tive vontade de me cortar e esperar por uma cicatriz semelhante. Mas não fiz essa maluquice. Agora, a menina sem cicatriz seria também uma menina sem graça, sem charme, sem identidade, uma menina comum e qualquer.
E apesar dos seus muitos predicados, foi uma surpresa geral quando eu me apaixonei e encontrei um namorado antes dela. Pela primeira vez eu fui a primeira. A descoberta do amor, o calor dos encontros. Os abraços longos e os beijos de tirar o fôlego. Sim, eu experimentei tudo isso com sabor de vitória. O que não chegou a ser uma vantagem. Era de se esperar que ela, encantadora e envolvente, acabaria logo com o meu namoro. Aproximou-se aos poucos com humildade dissimulada, com seu jeito sórdido, lançando seus tentáculos invisíveis até roubá-lo de mim. De novo, foi a primeira das duas. Dessa vez, a primeira a trair.
Se eu pudesse desejar alguma coisa na minha vida? Em especial na minha relação com ela? Eu poderia escrever a versão feminina de ‘Dois irmãos’, com a permissão de Hatoum. E pode parecer estranho, mas eu deveria amá-la. Verdade, nós somos irmãs. Gêmeas. Nascemos do mesmo óvulo fecundado, univitelinas. É só isso que se espera de nós duas. União e muito amor fraternal. No entanto, o que tem mesmo é uma competição idiota entre nós. E eu não suporto. Ainda mais quando se perde sempre. Olhar para ela, que é igual a mim, e não me reconhecer é terrível. Eu me vejo no espelho e tenho vontade de quebrar a minha própria imagem. Que ódio! Voltando à pergunta, o que eu desejo em nossa relação num futuro próximo? Imagino o dia em que eu estaria caminhando ao lado dela, num lugar bucólico, calmo, cercado pela natureza. Eu, calada, apenas ouvia ela dizendo o quanto me amava, o quanto se arrependia do mal que havia feito durante o nosso convívio. Que dali por diante, tudo seria diferente entre nós. Ela então me ensinaria coisas que me escondeu a vida toda e que a fizeram ser a primeira em tudo, conseguir vantagens. Daí ela confessaria que as notas boas no colégio eram uma fraude, muitas vezes aumentadas por conta da sua sedução junto aos professores, nas constantes visitas que fazia à coordenação. Ela me diria que meu namorado, que me trocou por ela em menos de um mês, fora apenas um deslize idiota, um equívoco. Ela iria me implorar perdão pela placenta consumida a mais, pela extravagância calculada de seus gestos, pelo cheiro mais embriagante que o meu, pela voz mais doce que a minha, pelo olhar mais hipnótico que o meu. Por fim, ela diria, às lágrimas, que tudo isso foi por inveja. Sim, inveja. Pois eu sempre fora a mais centrada, a mais observadora, a mais forte e que nunca ela conseguiria ser igual a mim, na essência.
E a minha resposta? Tudo bem, eu diria, com desleixo, sem sinais aparentes de rancor, um tanto sonolenta e desinteressada naquela confissão. Depois, voltando a caminhar em silêncio, enquanto atravessávamos uma estreita ponte que cruzava um rio profundo e agitado, eu a abraçaria com força, diria que eu sempre iria amá-la apesar de tudo e de todo o sofrimento que eu passei. Sim, eu a perdoaria. Na sequência, eu a empurraria do alto do parapeito daquela ponte, uma cena em câmera lenta, eu aliviada e observando a agonia de sua queda, sua expressão de horror e arrependimento, o baque surdo nas águas que a engoliriam sem dar a ela qualquer chance de reação.
Se encontrassem o corpo? Para mim, pouco importa. Se encontrassem o corpo, pelo menos que o identificassem pela maldita cicatriz intacta em seu rosto desfigurado.
E se nada disso acontecesse e eu morresse antes? Acho improvável, afinal, primeiro ela.
Adriano de Andrade:
Nascido em Juiz de Fora/MG, 44 anos, sou formado em Engenharia Elétrica, com Mestrado pela COPPE/UFRJ. Trabalho atualmente no Rio de Janeiro e resido em Niterói. Casado, pai de dois filhos, acredito que a união entre a literatura e a engenharia resulta em transformação: “Agora, sou letras e números”.
Lancei em 2015 o livro “O inverno que não acabou e outros contos”, pela Editora Novo Século, e participei nos últimos anos de diversas coletâneas de contos e poesias.
Parabéns Adriano. Você sempre surpreendente!!!!