Aos olhos do morto
os olhos azuis de meu pai estão enterrados em mim
há olhos que enxergam melhor nas profundezas de além terra
e o céu é mais claro aqui
sem nuvens, sem sol, sem aviões transigindo o ar
turva turmalina de brilho ébrio
placas, setas, números, símbolos
nada faz sentido diante dos olhos enterrados no mundo
[o sentido não é sentido]
enquanto espera, olha em volta
enquanto espera, sente
enquanto espera, carrega de vida esses olhos
sentimento do mundo que dispersa o peso dos pés
que andam, andam, andam cavando o chão
procurando espaço, procurando uma brecha, procurando uma réstia
algo que o leve para longe
enquanto a terra aguarda ali no fundo, leve
esse lugar não me é estranho
nada é estranho aos olhos que descansam à sombra do mundo
Cânone
liquidar as dezenove multas de trânsito acumuladas ao longo do ano
refinanciar a dívida com o imposto de renda, caso contrário a declaração para concorrer naquele edital de culturajamais sairá
arrumar dinheiro com o agiota, aquele que antes era o fornecedor de aditivos para criatividade, e pagar as três pensões alimentícias atrasadas antes que receba voz de prisão
descolar um pouco de gengibre e limão com a vizinha do 308, fazer um chá e tentar manter a voz para a apresentação da próxima semana
criar coragem, buscar os exames médicos e aplacar a desconfiança da nova companheira depois que algumas manchas coloridas passaram a habitar o corpo esquálido
atualizar o lattes para ser bem visto pelos bem apessoados da academia, coisa bem escrota, mas necessária, enquanto ainda resta a mínima possibilidade de arranjar umas aulas até que descubram o que fez na turma anterior
negociar o pagamento do aluguel atrasado há quatro meses
buscar o carro apreendido pela polícia após a bebedeira da noite passada
bajular a imprensa, sorrir amarelo e tentar não vomitar
como se não bastasse tudo isso, há a necessidade premente de se posicionar ante ao fascismo institucionalizado que teima em voltar a mostrar suas garras
tanta coisa a fazer
e você só consegue pensar na possibilidade de comer alguém com o próximo livro
Para onde você vai quando vai para o inferno?
saindo do caminho perfeito, rumo ao abismo vicinal
o acaso lança tranquilamente seus dados
e se é sorte ou azar nunca se saberá
desvios existem para nos tentar
sempre haverá uma vala te esperando ao lado de qualquer estrada
seguir para esse ou aquele buraco é mais confortável do que o inerte permanecer
tantos silêncios ecoando em fuga na tentativa de evitar o que nos grita
o que não te pertence arrasta as correntes do desejo
e aponta certeiro para onde você vai
quando vai para o inferno
ao claro que te despe de todas as desculpas
agora é você e o espelho a mostrar o escuro que habita em sua caverna
a bela vista do infinito é o que atrai para o abismo
o vácuo que te leva e eleva ao céu que sombreia quem passeia
perdido pelas ramblas do desconhecido
o sol de seol queima toda moral e nos iguala – somos o bem e o mal –
quando não estamos mais, somos apenas meros habitantes da mesma morada
vagamos no limbo de tempo espaçado em descompasso de rapsódias colossais
estamos certos que de certo só a possibilidade do erro
atenção você que erra fugindo da imediata hora!
qual o lugar que há ou melhor hora para errar
já que um dia essa hora há de chegar?
então, o que você faz? para onde vai se não há paz?
para onde você vai quando vai para o inferno?
Wélcio de Toledo é poeta, contista, fotógrafo amador e atua em movimentos sociais e culturais de Brasília. Inconformado, revoltado, anarquista que acredita no caráter essencialmente libertário da poesia. Poesia é força motriz priapicouterina. Literatura é trabalho que lhe tira sangue, suor, sêmen. E o poeta um cara que trabalha com poesia. Quando a esperança com a literatura esgotar, coisa que está próximo de acontecer, espera arregimentar alguns inconformados para montar uma guerrilha alienígena e libertar o povo incauto dos males que o vampiro temeroso assexuado propalou pelo país.
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