lá se vai mais um dia
no canto enforcado em vento em
todo o vazio da estrada
fantasma rumando ingênuo
de sal se transmuta em névoa
estrado arrasta os dentes lábios prensam sóis desejos
efêmeras travessias
diáfanas companhias
e as pálpebras, correnteza
e lá se vai mais um dia,
um dia de cinza ao sol
do sol que com chuva vira
pedra que sobe e vira
lua que cai e vira
neve que some e vira
poeira no pé da estrada e
– à noite; conversa, calma
com pés palmilhando o vento e
***
sibila a incriação
desiste, insídia insone
enseja sói instar ferrolhos mortos
da porta velha arranca da soleira
escapa às sólidas paragens em cruzar ao lado estranho
em noturno interno circunlóquio;
escava-seconcavidade circunfensa
em caos de talvez quase cosmogênese
no vir-a-sendomínimo barulho
ou, antes
:
prega a doutrina inexata da existência
não poder-se ser e não se ser
ou não ser antes de ser
e vir a ser se insenteantes
e deixar de ser depois de ser
da porta arcaica sente não se pode antes não ser
ferrolhos cheios de ferrugem não podem ser pois
sendo só teriam
sido por mãos antes fazentes
que antes só teriam sido feitas
sendo estantes já outrora infeitas
***
mãe,
eles não viram que eu tava com roupa de escola?
eles não viram a roupa de escola?
eles só viram o preto por baixo da roupa de escola?
quem mata por trás da roupa de escola?
pra que me mataram com roupa de escola?
não quero essa dor nessa roupa de escola
a mancha de sangue na roupa de escola
sai?
a mancha no chão na roupa de escola
sem corpo por dentro da roupa de escola
com mãe abraçada no chão dessa roupa
segura minha mão que hoje é dia de escola
me leva pra escola com roupa de escola
me leva no colo na maca com roupa de escola
me leva pro céu com outra roupa de escola
que essa tá suja, essa roupa de escola
me leva, me cura, essa roupa de escola
me dói no buraco do tiro na roupa
de escola
mãe, eles não viram que eu tava com roupa de escola?
mãe, eles viram que eu tava com roupa de escola
mãe, eu vi quem me viu com roupa de escola
mãe, pra que serve essa roupa, essa roupa de escola?
mãe, eles viram que eu tava com roupa de escola
vivo, mãe, por detrás dessa roupa de escola
me beija e me diz que essa dor vai passar
que a ambulância me leva direto pra casa
que quero voltar pra essa roupa de escola
não me deixa na rua, me leva pra casa
não quero vestir essa roupa de escola
esfolada, furada, manchada de escola
manchada de pedra, de asfalto, de tiro
eles vão me deixar entrar com essa roupa?
tiraram a roupa, minha roupa de escola.
mãe,
não precisa chorar, já passou, vamo embora
levanta, eu te levo, eu costuro, não chora.
Rodrigo Tadeu Gonçalves (Jaú, 1981) é professor, editor, tradutor e publicou seu primeiro livro de poesia, Quando o verão, pela Kotter em co-edição com a Patuá (2018). Em 2017, publicou com Guilherme Gontijo Flores o livro Algo infiel: corpo performance tradução (ed. Cultura e Barbárie / n-1). Nos dois livros, Rafael Dabul fotografa. Com Flores também fundou em 2015 o coletivo Pecora Loca, que põe poesia e tradução em música.
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