3 poemas de Carlos Emílio Faraco

 

CARLOS XXX 235x300 - 3 poemas de Carlos Emílio Faraco

 

 

DIVAGAÇÃO SOBRE O DIA

Um dia claro não é necessariamente
um claro dia
(assim com um homem grande
não é necessariamente
um grande homem).
No caso do dia, porém,
há razões que ultrapassam todas as manhas da língua
e vêm das manhãs luzidias
a nos pregar o olhar nos céus
que sonhamos nossos,
e desviá-los da terra
que nos compete lavrar,
a mesma que tarde ou presto –
quando formos objeto –
há de a carne nos arar.

Um dia claro pode ser apenas
um disfarce de cobra,
que enrolada ao pescoço
do humano e pobre esboço
que somos do Criador,
dissimulou em mil brilhos
sua função de colar:
não nos aperta a garganta,
mas nos cega com luz tanta,
que chega a nos afogar.

Um dia claro,
sem escuro,
pode ser apenas
um dia obscuro.

 

 

UMA MULHER EM FIM DE TARDE

A mulher
varre a casa.
Sempre com vassoura de pelo,
porque é do time das delicadas.

Puxa levemente
a sujeira (pouca)
para si
(nunca empurra),
pois varre há tanto tempo
que não sabe mais
se é responsável
pela sujeira
ou pela limpeza
daquilo que chamam lar.

Pensa:
é muito simples falar
em lar só com
fitinhas do bonfim,
coleção de serafins,
almofadas de cetim:
os lares acumulam também
su-jei-ra,
e há que ter pique (e vassouras)
para mantê-los limpos.

A mulher pensa e varre.
Pensa mais que varre –
eis que nesta tarde,
excepcionalmente,
esses pensares bestas
aniquilaram o ato de varrer,
antes tão simples
quanto beber água.

O pensamento se instalou
e ela não consegue detê-lo,
como se os pelos da vassoura
se desorganizassem
e parassem de puxar a sujeira,
especialmente a dos cantos,
que ela tanto odeia.

Agora, varre pensando…
E nesse varripensar,
proclama pra si mesma
que está doida:
e varrida.

Limpa por fora,
criança por dentro,
agora já varre sem direção
tomada por uma força estranha
que a leva a cantar.

São chavões,
mas ela se encanta
com a possibilidade de cantar
e varrer ao mesmo tempo
(lembra-se vagamente da mãe
que repetia aquele provérbio sobre
assobiar e chupar cana).

Fortalecida pelas descobertas,
seu corpo entre em vertigem incontrolável:
ela dança com a vassoura de ponta-cabeça,
alisa-lhe os pelos,
conduzindo-a,
ou sendo conduzida, não sabe precisar.
Depois,
deita-se devagarzinho na cama
põe a vassoura do lado
e chora um choro domesticado.

 

 

TRAVESSIA

Entre o Amor e um amor,
há que considerar
a distância que medeia
entre abstrato e concreto.
Entre a ideia de um rato
e um naco de queijo mordido.
Entre uma régua dormente
e um caminho percorrido.
Entre uma flor em setembro
e um perfume envasado.
Entre um tronco enraizado
e um lápis cor de terra,
que desenha no papel
uma árvore marrom.
Viver um amor, portanto,
é sempre um grande confisco:
é sair da casa quente,
com resguardo,
frontispício,
e jogar-se
– em fome urgente –
no fundo do precipício

 

 

Carlos Emílio Faraco – Sou professor aposentado. Escrevi vários livros educacionais. Tenho 71 anos. Aos 60 peguei essa mania boba de tentar fazer versos e escrever ficção . Um dia passa.

 

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