Do romance Um dia Toparei comigo, de Paula Fábrio

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Um dia toparei comigo

Paula Fábrio

Editora Foz

160 págs.

Preço: 37,90

 

 

CAPÍTULO

            A ligação estava ruim. Chiado da fiação ou a voz de fato falhava, advinda do fundo de um caixão. A segunda hipótese só me ocorre agora. Naquela segunda-feira, ele telefonou para contar que marcara médico. Por três vezes me deu datas diferentes para acompanhá-lo e também reclamou de não ter tido companhia para almoçar no domingo. Eu almoçara com ele no domingo. Urrei do outro lado da linha, aquela chantagem não era justa. Talvez eu estivesse variando. O tom ansioso da minha voz denunciava, falava como se corresse numa estrada para me livrar dos problemas. Para me livrar. Simplesmente. Ele não ouvia meus argumentos. E de repente mudou de parágrafo, para falar do baile, do namoro que terminou dentro do carro, na porta do clube atlético, onde havia um salão para bailes às sextas-feiras. A mulher dirigia carro importado, modesto, mas importado. E não era só. Trabalhava num escritório de exportações. Cinquenta anos e duas filhas casadas. Boa companhia, engraçada, não cobrava muita coisa, apenas um pouco de sexo. Mas isso ele não disse a mim, disse à empregada. E esta me reportava tudo, bisbilhotando a partir de um senso prático: seu pai está ficando velho.

            Setenta e cinco anos e alguns detalhes, à primeira vista, imbecis. O atropelo do motoqueiro num cruzamento do bairro. Suas mãos tremiam e ele repetia, não sei de onde ele veio, mas pode vir a me processar. O carro já estava meio uva-passa mesmo. Resolvi não acumular problemas. Mas depois vieram mais detalhes, a princípio também idiotas, mas depois não.

            O fato é que, após o último baile, meu pai nunca mais conseguiu memorizar a data de uma consulta. E isso eu somente descobriria na semana seguinte. Naquele dia, o dia do telefonema chiado, encerrada a ligação, prossegui discutindo com ele, tentando me desvencilhar de um impeditivo. O impeditivo de seguir minha vida. Ele na casa dele, eu na minha. Mesmo assim eu gesticulava. Os móveis da casa a me observar. Talvez me repreendessem. Não sei. Mas interposto ao meu raciocínio, perfurando minha cabeça, reverberava cada minuto do almoço de domingo. Almoço de domingo, ocasião de coletar pérolas. Pérolas sobre economias necessárias, a vida do aposentado, a poupança a definhar, o governo e um tal ministro advogando em prol do arrocho salarial dos velhinhos. Um governo ruim, que eu não achava tão ruim, ao que ele contestava, espere chegar na minha idade.

            Faça-me o favor, por nada eu queria permanecer ali, em visita à sua velhice. Em visita ao meu futuro. A relação com os pais deveria ser menos obrigatória. E eu pensava, onde há amor em mim?

***

            Os documentos. Os documentos estão na pasta. Já amarela. Tão guardada de mim. Dizem que é bom guardá-los, pelo menos por um tempo.

            Receosa, vasculho aquele nicho nomeado herança. Identidades caem no chão. Recolho os papéis com mãos caridosas, reticentes, quase infantis. Fotos antigas, datas de nascimento que antes já me pareceram mais antigas. Agora se aproximam de mim, numa manobra matemática inconformista e exasperadora.

            Me cubro de tensão. Quem recolherá meus documentos? Os documentos de uma existência que não haverá mais. Quem fará o papel que estou fazendo agora? Quem decidirá por queimá-los ou guardá-los? Quem revolverá o medo de ser o próximo?

            Tenho tempo para adiar. Adiar decisões. Pensarei nos documentos depois. Agora a campainha traz o doce sorriso de dona Helena.

            Fico sabendo que sua filha quer buscá-la.

            Em vão.

            Helena é matrona, não vai se subjugar em outra casa, encurvar-se num quarto com bordados e revistas de telenovela. Ainda tem amigos. Dona Eugênia mora ao lado e juntas fazem o supermercado e a feira. E tem a mim. Solto um longo suspiro, que ela percebe. Estamos felizes. Que bom que ela não mudará do Richard Wagner. Teremos ocasiões para nos consolar.  Ouvir gritinhos no corredor, ela e Eugênia rindo da vida. Haverá outras tardes com café e álbum da Espanha. Não haveremos de desperdiçar, ainda mais agora que o primeiro velhinho morreu.

 

 

 

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Paula Fábrio nasceu em São Paulo, onde mora. É mestre e doutoranda em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Seu romance Um dia toparei comigo(Foz) foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2016. Desnorteio(Patuá), seu livro de estreia, venceu o mesmo prêmio em 2013. A autora dá aulas de escrita criativa e mantém uma coluna de entrevistas na Revista Pessoa. No segundo semestre de 2018, será lançado seu primeiro livro juvenil pela Edições SM, ainda sem título definido.

 

 

 

 

 

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