VENHO PELO DEVER DE REMAR À ESTRELA GRAVE
venho pelo dever de remar à estrela grave
sílaba a sílaba pelo fogo
que do céu alastra no alicerce
e do fundamento inflama o vasto
navegar no escuro
abrasado
absoluto [nunca a esmo]
até que o rumo incandesça nas pontas
e seja exata a obra
abóbada e abismo lidos adentro
reunidos pela mesma substância:
no alto a semente espalha
abaixo a fagulha condensa
e assim me difunde— o bom regresso
tão propenso
à constelação das falhas
e as duras mãos
tocando as letras bravias
como quem se mete com deus e o fundo
como quem sempre rema e nunca chega
TEORIA
se todos os seres humanos desaparecessem
a Terra se tornaria um lugar muito diferente
em poucas horas
a maioria das luz ao redor do globo se apagaria:
as estações de energia não funcionam sem combustível
e até os painéis de energia solar
cedo ou tarde
estariam cobertos pela areia
as únicas usinas em funcionamento
seriam as hidrelétricas
em dois ou três dias
a maioria dos sistemas de transporte subterrâneo inundaria
porque as bombas que mantém a água nos reservatórios
parariam de funcionar
em dez dias animais domésticos e rurais morreriam de fome
só os cães de grande porte vingariam
— livres para caçar outros animais
um mês adiante e toda a água de resfriamento
das estações nucleares estaria evaporada
e isso desencadearia uma série de desastres
tão terríveis quanto Fukushima
tão trágicas quanto Chernobyl
é claro que o planeta se recuperaria de tanta radioatividade
tanto que um ano mais tarde
os satélites começariam a cair de suas órbitas
criando um nobre espetáculo de estrelas cadentes
às baratas e aos répteis
vinte e cinco anos depois
e a vegetação cobriria o que foi civilização
enquanto várias cidades seriam enterradas pelos desertos
trezentos anos mais tarde
e as pontes, torres e instalações de metal — tão corroídas
quanto as nossas esperanças
— começariam a mais bela sinfonia das quedas
dez mil anos se passariam
e a única evidência da nossa existência
seriam as coisas que talhamos em pedra
como bem são as pirâmides, a Grande Muralha da China
e o Cristo Redentor que até tentou proteger o Rio
de braços caídos
e se a vida evitasse o seu próprio fim
— como um apocalipse nuclear
ou um asteroide mortal — ela resistiria aqui
por outros quinhentos milhões de anos
recuperando espécies
e criando outras para o mais puro silêncio do mundo
mas daqui a uns seis bilhões
estima-se que o sol
se torne uma potência vermelha
em franca expansão
e acabe engolindo o nossa planeta
no dia mais quente que verão algum já registrou
ainda assim
se os seres humanos desaparecessem de Terra
e depois toda a Terra
ainda assim a galáxia seria um bom lugar
e ainda que extinto e luminoso
espalhado pelos ares
eu me lembraria do teu sorriso
do amor tomando o corpo
e de toda aquela louça que você deixou na pia
AMA OS PESOS: O ALFABETO EM DECLIVE
ama os pesos: o alfabeto em declive
o tigre ao longo do gato
o limão podre que engrandece a terra
o rastro fúlgido à noite
o vasto cardume na escama de um só peixe
ama o pão reinando sobre a mesa
o que liga a intensidade ao molde
e cada laço fecundo da arte negra
ama a tremura dos mortos — o clarão que alaga o sangue
os trabalhos e os rios na casa da essência
mas solta as folhas do verbo outono
o medo no fogo e no breu
o meio riso e a tábua de nuvens
— tudo o que fermenta
e não dura senão por um minuto de sempre
aprende: o amor é inútil nas levezas
Leonardo Chioda (Jaboticabal, 1986) é formado em Letras pela Universidade Estadual Paulista. Estudou literatura clássica, história do teatro e língua italiana na Università degli Studi di Perugia. Pesquisa e escreve sobre simbologia e literatura e é aluno de mestrado em poéticas de expressão portuguesa na Universidade de São Paulo. Publicou Tempestardes (Patuá, 2013) e PÓTNIΛ (Selo Demônio Negro, 2017). No momento escreve ‘O Livro de Ouro dos Abismos’, sua terceira reunião de poemas.
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