Aquele momento em que o mergulho se faz necessário
(As Fixações de Antônio LaCarne)
Por Flávio Caamaña
Não se pode pensar um conto e não pensar numa luta ou numa dança entre duas pessoas; o autor e o leitor. Jorge Luiz Borges, em seu transcendental conto “O Livro de Areia”, escreveu: “Fará uns meses, ao entardecer, ouvi uma batida na porta. Abri e entrou um desconhecido”. Assim se nos apresenta Antônio LaCarne com seus contos na surpresa de uma tarde ou [num]“a madrugada com rostos resignados de lobos”. Antônio se diverte. Suas metáforas obedecem à sua fantasia, chegam-nos assim como num “sono desperto controlado”, como na teoria de alguns psiquiatras, com um realismo que se desloca, aplicando a palavra com segurança para focar as imagens, recriação muito particular do mundo de suas personagens.
Não é um texto colonizado e não é um texto que nega a sua pluralidade, não se exaure e jorra, marcando os limites, estes a que somos impulsionados pelo enrijecimento, pela justaposição, pelo que nos é confiscado, solidão e desafio. Em um momento em que o mundo inteiro está morrendo de medo diante do narcisismo europeu, dos canhões norte-americanos, do buraco mal cheiroso onde depositaremos nossos votos, nos confrontamos com a personagem Jorginho ( e todos nós somos Jorginho), “fixando o olhar” como “alguém se equilibrando no leque das circunstâncias duvidosas”, desejando uma cumplicidade, “mesmo que vã”, com um medo que brota nos intestinos, de encontro a uma escrita de desintoxicação, para que a metamorfose seja conversão ou um despertar para uma plateia que se deixa tocar e atravessar pela superfície do sonho.
Em Shangai Não Me Espera, eu me vejo envolto pela personagem dúbia que vive dentro de si. Ela docemente flutua. E é a personagem que quer “enxergar o que existe por trás das estrelas” o seu“príncipe selvagem imita[ndo] fôlego e respiração”, recendendo a orgulho e graça, quase um cafetão que diz “este relato não representa alguma coisa morta e viva”. Submete-se ao possuidor de seu prazer e ele é certo de não errar, quase um cigano esse “príncipe selvagem”, simplesmente vivencia as oportunidades perdidas, particularmente abatido pelo destino. Deseja atingir o hálito e “rasgar a boca com os botões”, num ato masturbatório. E o que é verdade e o que não é verdade, se “a vida se baseia em golpes do destino, na horrível educação das pessoas que não respondem ao seu bom dia”.
Antônio faz rodar a porta giratória ao escrever Arlete No Vazio. Existem indivíduos que vivem num carrossel, permitem-se infundir-se no Tribunal, num “salva-se quem pode – e ensaia uma vida quem ousa viver”. Arlete recolhe copos, serve o chá, intui a lei vertiginosa da circulação, é assim que a vejo. É preciso comentar que li este conto ao som da canção White Robbit de Jefferson Airplane, em que a compositora faz uma instigante alusão ao Alice No País Das Maravilhas de Lewis Carroll, e recorda o momento em que o ratinho fala para Alice “alimente sua cabeça, alimente sua cabeça”. Arlete é a continuação de Alice. A casa se torna o esconderijo – um buraco. E todo pensamento é bálsamo para as costas, “ela é o maior dos cetáceos em corpo humano, inundada de sal, amargura e higiene”. Arlete é criminalidade e mistério, ela inventa um mundo para atender às suas necessidades, o cotidiano é imutável e ao mesmo tempo predestinado, a narrativa não é como se poderia pensar e se abre num discurso de fluxo sagrado, de pensado rito.
Para alguns essa mania de infelicidade não é geral, é individual. Mas Antônio LaCarne não falsifica. Todo o aspecto junta-se ao fato de o autor estabelecer um convívio com cada estória, desenha um pano de fundo no qual o universo está imerso em rápidas perspectivas, para que se cumpra a sentença de que uma estrela no céu não é vã, em que ninguém se puna pela vontade maníaca, não por autossuficiência, mas para emboscar o olhar no inusitado, para salvar o leitor da fantasmagoria e adotar uma firme crença de que existimos e sobreviveremos com novos dons nada domesticados. Eleger solidões e percursos é a fagulha que acende a fogueira para esse talentoso autor que assinala de forma epigráfica [su]“a fome que se destina ao que também é vivo e invertebrado”.
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Antônio LaCarne é cearense, nasceu em 1983. É autor de “Salão Chinês” (Patuá, 2014), “Todos os poemas são loucos” (Gueto Editorial, 2017). Participou das coletâneas “A Polêmica Vida do Amor” (Oito e Meio, 2011), “A Nossos Pés” (7Letras, 2017) e “Golpe: antologia-manifesto (Nosotros Editorial, 2017). Seus textos estão presentes em revistas e suplementos literários, além de ter poemas publicados na Colômbia.
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Flávio Caamaña é um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Atualmente residindo em Fortaleza, obteve primeiro lugar no XVI Prêmio Estadual Ideal Clube De Literatura, participou de algumas coletâneas em livros e revistas eletrônicas. É autor de AQUEDUTOS (PATUÁ, 2016).
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