CAPÍTULO
Parecia que as estrelas que cobriam o céu escuro das noites do sertão não gostavam das gentes que pra lá migravam. Quanto mais gente chegava, menos estrelas se via no céu. Ao certo procuravam lugares com menos trem e mato queimando. Tamanhas mudanças provocavam melancolia. Eu andava dormindo mal. Remexia na cama, incomodando o roncar alheio. Pensava no pai. “Sossega, mulher”. Não sossegava. Aquele dilúvio podia ter lavado a terra e deixado só Montanari e eu para repovoá-la. E o resto? Estátuas de sal. Nós dois, sozinhos, como foi nos tempos de Chico Prado. Joga-se a vida com os dados que o destino dá. Que fazer? Era Natal, aniversário do menino Jesus, e eu não conseguia alegrar. Nem por decreto deixei a Folia de Reis entrar em casa. Montanari sentiu falta de rabeca, flauta e tambor; e do Bico Doce fantasiado de Clóvis horrendo – barba e careta. Ele queria sair batendo de porta em porta pedindo café e pão com a folia. Não deixei. Amargava. Haveria Missa do Galo na casa dos frades. Rezava-se muito na cidade nascente.
Passei o dia estirada na cama, olhar fixo no teto, enquanto Montanari bebia e jogava baralho com o Santo Aleixo – outro italiano bom de copo. Sonhadores. Queriam trazer para a cidade a lanterna mágica que exibia filmes. Eu queria um filho – cinema da vida humana. Existir solitário já não valia a pena – queria deixar de ser uma só, ao menos um instante, e multiplicar-me no milagre terreno da carne. Pensava no meu filho vindouro tão sozinho no mundo. Quem sabe somando nossas solidões a gente não conseguisse alguma companhia? Cansara de ver o tempo rolando, rolando – feito dente-de-leão levado ao vento – sem que a gente tomasse as rédeas da vida. Queria tê-las na mão, pois – a gente há de seguir nascendo por algum motivo. Ou não?
Barulheira lá fora, Montanari breaco dançando com a porta. Serzinho miserável. Acendeu o lampião, encerrando o escuro agradável. “O cinema vai nos deixar ricos”, balbuciava perdigotos nos olhos. Paciência em mim era pouca. “Você anda muito melancólica, Rita”. Depois de tanto tempo desenlouquecendo o cabra, ensinando o bê-a-bá do português; essa. Quando perdia no jogo, estava de ressaca ou lembrava da chacina dos companheiros da NOB, só lamúrias. Pilequinho bom e vinha com bafo de álcool no cangote, comprava alheira na Loja do Sol e queria fritar de madrugada. Desaforo. Lampião espatifou-se nos tijolos do muro – ah, boa sensação no corpo – comecei a jogar objetos na parede. Não queria viver aquela mediocridade de sonhos assistindo a vida passar como o tal filme de cinema. Necessitava âncora para o presente em forma de gente. Ameacei voltar para o mato e ficar morando com os kaingangs. Vida começaria pra valer ou não?
Na manhã seguinte, estava sozinha na cama, mas tinha um bilhete ao meu lado. Montanari aceitava ter um filho.
As regras atrasadas um tanto. Misto de felicidade e medo. Se esse vingar, se chamará Giovanni. O corpo me dizia que haveria de ser homem. Imaginava Montanari e o filho primogênito carpinteiros de barquinhos d’ água doce. Isto seria algo para compensar a correria da cidade. (…)
Nosso Senhor dos Passos ainda era microscópica: duas mercearias, um açougue, algumas casas e uma pequena farmácia. Houve, também, um circo itinerante. Neste circo eles não tinham elefantes, equilibristas, palhaços ou mágicos; apenas pequenas aberrações e uma câmara de pesadelos.
Imaginei que Montanari fosse se alegrar com minha gravidez, mas ele voltou a ficar estranho por um tempo. Falava nas atrocidades das quais o homem era capaz e dizia que tinha visto o que iria acontecer daqui trinta anos. “O homem é o único erro de Deus”, repetia. Me sentia sozinha, apesar de Giovanni no ventre. Ele quase não se mexia lá dentro. Eu passava muito tempo deitada, acompanhada pelos livros, estudando um pouco de italiano, que aprendia lendo a “Comédia”. Tomava chá de Jatobá com salada de rosas toda madrugada. Mesmo em casa, era perseguida por pesadelos terríveis com morcegos, papai e o filho que levava na barriga. Também sonhava coisas vergonhosas, envolvendo pessoas com quem não deveria me deitar.
***
A criança veio antes do esperado. Quando o bicho espirrou das minhas coxas, na mão da parteira, achei-o monstruoso. Enrugado, olhinhos vermelhos, cabeça cônica, unhas compridas. Penugem por todos cantos do corpo magro. “Vampirinho”, pensei em segredo. Sangue e excreções tingiam o chão e as paredes – mas o cheiro da placenta era bom, acalmava.
Desesperado, Montanari bebia aos garrafões, enquanto eu sofria para amamentar Giovanni. Não se dormia mais na casa. A criaturinha não queria saber do meu leite, mas mordia meus seios até que sangrassem. Mamilos rachados, eu o alimentava com frutas amassadas e lágrimas. Continuava achando-o a criaturinha mais feia do mundo. Lia, Dona Helena e Madama Cartier queriam conhecê-lo, mas eu dizia que havia nascido doente. O que não chegava a ser mentira. Doutor Fausto, o médico maçom que chegara na cidade, não sabia explicar o que acontecera. Um castigo, havia de ser um castigo – pecados eu tinha. Quem não? E ainda possuía histórico: os homens em casa não vingavam regulares, aquele, então, era um teste de fé.
Giovanni nunca dormia de noite, mas passava o dia de olhos cerrados. Eu mantinha os janelões de madeira bem fechados para que ninguém o visse. Alguns vizinhos estranhavam os guinchos e grunhidos agudos madrugada adentro. Montanari arrancava os cabelos sem conseguir dormir, mordia as mãos, batia a cabeça na porta. “Terribile! Terribile!”. Chegou a ficar vinte noites sem pregar os olhos.
Com os meses se passando, as fezes do bebê espalhavam-se pela casa e por todos os cantos havia restos de frutas; quando Giovanni abria seus pequenos olhos vermelhos eu me horrorizava. Como era feio, meu Deus! E eu que dizia que o Maria Castro, filha de Ricardinho, tinha nascido tortinha. Maldita boca. Montanari lamentava-se ao chegar em casa e ver o estado das coisas. Tinha voltado a frequentar os bailes de fazenda. Falava que era necessário tocar na Banda Internacional e nas festas de final de semana para sustentar a casa. Meses haviam se passado, mas Giovanni gritava a noite toda ainda. Montanari me culpava.
– Foi você quem inventou essa maldita história de ter filhos, Rita… Éramos tão felizes juntos, nosso amor nos bastava. Ma porca di quella miseria, no! Você nunca pode estar satisfeita. Agora essa praga está sugando nossas energias, nossas economias e o que restou de nossas juventudes. Ninguém mais dorme nesta casa, não se faz mais amor. Pra que botamos mais miséria num mundo sem futuro? Puttana del cazzo, quero minha vida de volta!
Nunca estivéramos tão distantes. Numa manhã, enquanto Giovanni dormia, toda enrolado e invertido, pensei em sufocá-lo com o travesseiro. Que blasfêmia, era meu filho! Amava-o, apesar de tudo. É possível uma mãe não amar sua cria? Até as cadelas o fazem. Ah, aquelas unhas longas, aquelas costas peludas, aquelas…
Maria Justina, minha irmã mais velha, acostumada com as bisonhices dos homens da família, foi a única que deixei que viesse me ajudar. Era noite e a casa não dormia. Formigas se arrastavam em minha barriga e cogumelos cresciam na minha garganta. O menino estava no peito e eu não conseguia parar a enxurrada que escapava dos olhos e lhe lavava o corpinho diminuto. Maria Justina levantou da cama de couro em que dormia e se deparou com a Pietá invertida.
– É uma alegria incontrolável, mana?
-Não é alegria, é dor, Justina, é uma dor que vem fundo da alma. Acho que eu morri quando este menino nasceu. O que sobrou foi esse “isso”. Bagaço de corpo. Estrupício.
Até então, não havíamos batizado Giovanni o que agravava sua situação. Eu tinha medo do povo da roça. Basta a história correr um pouquinho e já me julgariam bruxa. Que mulher que pare bicho, gente? Pedi que Maria Justina ficasse com a criaturinha, enquanto eu ia fazer compras em Rio Preto para descansar a cabeça. Fazer algo sozinha ia ser bom. Justina estava me convencendo a chamar o Frei Aspreno e fazer o batismo em casa. A coitada estava lavando roupa pra fora, lá pros lados de José Bonifácio. Um dia nossa família tivera tanto e agora cada uma se virava com a miséria que herdara. Meus irmãos ainda haviam convivido com seu pai. E eu que ria do meu quando os Capa Negra troçavam dele? “Africano”, diziam. “Atrevido”, ralhavam. João Capa Negra comendo mamãe, viúva, com os olhos. E eu que perdi terras, pai, coroa e vida? O pai sem rosto todo dia nas minhas noites. Sorria sem dentes, vingativo. Faminto. Afundava na dor. Justina me transportava pro real: “Se Giovanni morre pagão, imagina? Passa a eternidade no limbo sem nunca ir pro céu. O menino é normal, mana, presentinho de Deus”. Sua simplicidade comovia. Prometi acertar tudo quando voltasse da viagem. Precisava esvaziar os pensamentos. Lembrei dos meus estudos de italiano “Non avean penne, ma di vispistrello era loro modo”. Achei Rio Preto uma beleza, a cidade estava bem desenvolvida e tinha ótimos panos com os quais eu completaria o enxoval do nenê.
Cheguei em casa desolada. O pequeno ninho estava vazio. Maria Justina também não estava em casa. Uma lacuna abriu-se imediatamente em minha alma. Achei que Montanari havia feito uma loucura. Onde estava Giovanni? Onde estava meu filho?
– Rita, me perdoe, mas dispensei sua irmã, ela estava enchendo a minha cabeça com aquela história de batizado. Tive sonhos agitados a noite toda e acabei cochilando de dia. Quando despertei vi a janela aberta ao lado do bercinho. Nosso filho fugiu…
– Como assim, nosso filho fugiu?!
– Fugiu. Voando!
– Voando, Montanari? Um bebê, voando? Você endoidou de vez? O que você fez?
– Eu juro por Deus, Rita, eu juro que não fiz nada. Foi… Foi… Un miracolo! Um milagre!
Vesti preto, desde então, e passei a reparar nas copas das árvores frutíferas onde reúnem-se os morcegos. Eu e Montanari nunca mais tocamos no assunto, nem comentamos aquilo com ninguém. Nessa época, começaram a aparecer as primeiras manchinhas brancas na sua pele sempre que Montanari tomava sol. A tristeza desbotava-o.
Fred Di Giacomo nasceu em Penápolis, sertão paulista, filho de professores idealistas que o criaram rodeado de livros. Migrou para São Paulo para se arriscar como jornalista e chegou a redator-chefe na Editora Abril. Nesse período, criou infográficos premiados e foi pioneiro na criação de newsgames reconhecidos internacionalmente, como Science Kombat, lançado pela Superinteressante. Depois de sete anos e meio, pediu demissão para tocar o Glück Project – uma investigação sobre a felicidade, em Berlim. De volta ao Brasil, escreveu roteiros para o programa “Conversa com Bial”, da Rede Globo, e foi editor e professor da Énois – que forma no jornalismo jovens das periferias de São Paulo. Fred foi coordenador e editor do “Prato Firmeza – o guia gastronômico das quebradas de SP” (finalista do Prêmio Jabuti, em 2017) e é autor, entre outros, de “Canções para ninar adultos” (Ed. Patuá, 2012) e “Haicais Animais” (Ed. Panda Books, 2013). Seu mais recente livro, “Desamparo” (Editora Reformatório, 2018), é sua estreia no gênero romance. Sua prosa poética é inspirada em farta pesquisa sobre a violenta colonização do oeste paulista e mistura jornalismo caipira com realismo mágico. Desamparo vem colecionando matérias e resenhas elogiosas em espaços como o Correio Braziliense e o site A Nova Crítica. Nas horas vagas, Fred escreve letras e toca baixo na banda Bedibê.
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