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um gato preto na capa de um livro
metade do planeta em erupção
burroughs assaltando outra farmácia.
e eu entendo se você não quiser
dar nome às coisas que se desintegram
dos teus soluços mentais
e eu entendo se você quiser morrer
sangrando por todos os orifícios
sem que ninguém te toque
te beije os olhos
e te diga adeus.
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caminhando pela avenida corrientes
ulises para em todos os sebos
– deve haver pelo menos cinquenta sebos na corrientes –
e pede se há algo de mario santiago papasquiaro
ou de josé alfredo zendejas pineda
se há algo de um poeta mexicano marginal
desconhecido até mesmo no d.f.
pede aquilo como se fosse a última coisa do mundo
e a cada negativa recebida é como se perdesse
a possibilidade de inspirar o ar seco que fraqueja
em seus pulmões todos os dias.
pede um livro impossível.
atravessa a rua
entra em outro sebo
e tudo o que vê são livros de mariobenedetti e borges
la tregua el aleph la tregua el aleph
um relógio na capa e uma edição econômica do clarín em papel jornal
cruza a rua de novo e pede se há
algum livro de alejandra pizarnik
vê um imã de geladeira do roberto bolaño
mordisca o canto da unha.
a américa latina é um barco fodido
e toda a tripulação está morta.
***
agora eu estou bêbado. e lembro de quando você falava do seu pai. você disse que ele se matou tomando alguns comprimidos. você encontrou ele na manhã de uma segunda-feira. ele estava usando uma camisa branca com listras azuis. estava todo vomitado. alguns comprimidos ao lado da garrafa de cachaça. vocês não se falavam há um ano. sua irmã havia viajado 30 horas de ônibus para te vistar. na sexta-feira você havia feito uma janta. você, sua irmã e seu pai dividiam a mesa. depois de mais de dez anos. ele ria silenciosamente. tentava fazer com que vocês se sentissem inteiros. e estávamos numa praça perto da avenida san juan, em boedo, quando você começou a chorar. eu te amo como quando um avião irrompe cem nuvens ao mesmo tempo. e eu também comecei a chorar. eu sussurrava dentro de mim. pedia que o teu sofrimento fosse impossível. aí dávamos mais uns goles numa garrafa de cerveja. você falava da sua mãe também. que ela bebia dez latas de cerveja todos os dias. que ela limpou o seu vômito com a mão quando você ficou bêbado em monte azul. é assim que a minha incapacidade de viver se manifesta. isso é completamente insuficiente. a minha (in)compreensão é restrita. aqui dói pra caralho. como se um sol ardesse em cada junta do meu corpo. e você correndo e andando dez quilômetros por dia me fazia pensar que a tua dor se encapsulara. que aquilo que você viveu há cerca de quinze dias não existia mais. o conhaque, a geladeira vazia, o colchão e as roupas sujas, a vontade de aniquilar tudo. tenho uma foto tua e um bilhete que guardo dentro de uma caneca de alumínio. ele diz: “um amigo encontrou o livro de um autor que nunca existiu”. e continuo.
victor h. turezo nasceu em curitiba, em 1993. é poeta e tradutor. publicou minha massa encefálica despenca como se de um desfiladeiro (patuá, 2017). traduziu, junto com natália agra, bosque musical (corsário-satã, 2018), plaquete com poemas de alejandra pizarnik. estuda letras português/espanhol na UFPR.
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