DESPACHE
hoje acordei melancólico que só
e a poesia já tinha se encarregado da sua bagagem
dentro da minha cabeça
encarar as bananeiras sob o sol
enquanto o gelo derretia no copo
enquanto tanta coisa dizendo tchau
indo embora e eu cheio de razão –
foi a parte mais difícil
a razão
esse carinho
que podia ser de gente mas é de pedra
de couro extendido de arame farpado:
esquecê-lo é lembrá-lo tanto
até que nada mais aconteça
(NOTAS) BRAGANTINAS & ARACNOFÓBICAS
23h54
o primeiro ímpeto é de sair correndo
incendiar a casa
recomeçar em outro lugar
23h55
pego em vassouras
ando ao seu redor:
mantenho a distância do cabo
e mais alguns centímetros
23h57
deixo de lado a vassoura:
melhor ver se ainda há alguém acordado na casa
23h58
ninguém acordado:
volta a vassoura
você não esboça movimento
00h09
você ainda não esboçou movimento
nenhuma patinha sequer
e a vassoura em riste
00h11
decido largar a vassoura
00h15
largo a vassoura ao lado da porta da cozinha
bem de frente para a pia
onde você permanece
arcanídeo
imóvel
00h16
quebra de expectativa,
climão no ar:
cadê o quebra-quebra?
00h17
resolvo abrir o vinho
aliás
foi o que vim fazer aqui
mas
havia uma aranha no meio do caminho
00h20
eu poderia me sentar em qualquer outro lugar
mas não: isso significaria não te ver
portanto te imaginar
sobre o meu corpo
principalmente
00h21
me sento à mesa
aqui
de frente pra você
taça nas mãos
disposto a escrever sobre você
para me distrair de você
00h25
visão intercalada:
você
vinho
lápis
cigarro
caderno
eu tenho dois olhos
você
oito
impossível acreditar que eu não esteja
em nenhum ponto de vista
00h33
qual o meu medo
afinal?
que você me aniquile
inoculando algum veneno mortal
ao saltar em meu pescoço
no meio da noite?
talvez
ou que você venha me buscar nos pesadelos
ou seria um desespero da forma?
olho diretamente
continuamente
para a vassoura
00h38
você ainda não esboçou reação
como se tudo estivesse na mais santa paz
como se eu não interferisse minimamente
na sua ordem
enquanto você desestabiliza completamente
a minha
00h40
escrita é drama
00h51
tento me convencer
que largar a vassoura
estabeleceu um certo pacto de paz
entre nossos reinos
eu certamente poderia ter te esmagado
metade contra o ladrinho branco
metade contra o mármore frio
não fosse você você
e o meu medo de você
00h53
aliás
não fosse você você
eu nem me preocuparia
mas você é você
e o medo um centro de gravidade
00h55
talvez seja um tanto quanto grosseiro
este pensamento
mas é o único que te cabe
que nos cabe
01h11
nosso pacto segue firme e forte:
você se mantém na linha de fronteira estabelecida:
três patas e meia no mármore da pia
três patas e meia no ladrilho branco
de uma brancura (acredito) impossível
no reino dos aracnídeos
01h12
o vinho também colabora
aumenta a tolerância
01h19
caso o pacto se rompa
a) pegar novamente em vassouras
comprometendo assim uma parte da louça
e o sono dos outros
b) sair correndo
e gritando
e comprometendo igualmente o sono dos outros
(porém deixando a louça intacta)
01h22
é claro
pra você
tanto faz como fez
você não comprometeria o sono de ninguém
no meio do processo
(exceto o meu)
(o medo é nome próprio
pessoal e intransferível)
01h45
o ponto de vista da ameaça é o que me imobiliza
01h47
porque sou eu
averiguando de trago em traço
a linha de fronteira
01h59
certos medos: esse medo
tem tudo a ver com ego
com se achar mais suculento que uma mosca
02h07
corpo tenso
posso jurar ter visto de relance
um débil movimento de patas
02h10
começo a te perder pra escrita
02h16
você sumiu
03h41
engraçado
foi como encontrar um ex-namorado
A ALEGRIA DOS GAROTOS JOGANDO BOLA SOB O SOL
um dia sob o sol
um ano sob o sol
uma vida sob o sol
alegria é o alvo
a mira perfeita
oito horas de treino por dia
refeições balanceadas
banhos quentes
e sonos de beleza
alegria é esporte
o hobby ideal
preferido pelos papais
a qualquer nobel de literatura
o corpo todo dói nos primeiros dias
sim
é verdade
mas nada que uma selfie convincente não resolva
eu me pergunto aonde essa história de alegria pode nos levar:
alegria & sua tecnologia de ponta
alegria instantânea
alegria em pó
todos os dias
pela manhã
estômago em jejum
alegria
você me promete aquilo que meus amigos já têm
alegria
ajude a elevar-me
alegria
me ajude a ser feliz
ou será que é possível
felicidade triste assim?
alegria
cadê a comparação?
quais são suas medidas
seus parâmetros
seus preços?
alegria
vale o quanto pesa?
alegria
olhe para mim
quero ser sua putinha também
Diogo Luiz Yamanishi (1992) é poeta e mora em São Paulo.. Estuda literatura desde os 16 anos mas não concluiu a graduação em letras. Trabalha com produção de cadernos & livros artesanais, realiza traduções e é professor de inglês. Seu primeiro livro de poesia, “nenhum reino”, foi publicado em julho de 2017 pela editora Vindouros. Em outubro de 2017, publicou a zine “reino nenhum” também pela editora Vindouros. Participa de diversos saraus da cena paulistana. Integrou a mesa “Visibilidades e visualidades LGBTQI+ na literatura brasileira e as novas fabulações da figura paterna” na Casa Philos + Estante Virtual durante a FLIP 2018. Atualmente, participa do CLIPE (Curso Livre de Preparação do Escritor) na Casa das Rosas e tem apostado no formato do vídeo-poema para trabalhar seus próximos textos.
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