Lembranças
A chuva, essa noite, arrastou-se lentamente pelo telhado. Os pingos marcharam batucando o zinco que cobria a casa; o barulho da chuva é uma harmonia gostosa de se ouvir. Eu, debaixo de um fino lençol, ria. O frio invadia o tecido e provocava-me cócegas que me subiam dos pés à cabeça, me congelando as orelhas e o nariz. A alegria cessou em pouco tempo… A casa em que vivo é um pouco maior que nossa antiga casa, mãe, porém é feita de um só compartimento. Nele, cabe um guarda roupa velho e um fogão que perdeu duas das quatro bocas. Cabem também umas cortinas que divide os “quartos”, e que a noite uma delas me serve de lençol; cabem poucos sapatos, em verdade, não cabe nenhum, os meninos andam descalços, não há espaço para aventuras. Na casa cabe uma cama e alguns colchões pelo chão. A casa, mãe, tem piso de terra batida e cheiro de indigência.
A chuva me trouxe a lembrança das tuas mãos me alisando os cabelos; tuas mãos tantas vezes perfumadas de lavanda… trazias para casa o perfume em teu rosto cansado. Lembrei-me que as casas por onde passaste aromatizavas com produtos de limpeza, mas em nosso lar o perfume que exalava era o de nossa alegria… tão sós…
Lembras de quando nos divertíamos distraindo-nos em fantasia? Tuas mãos eram o “avião” que pousava em meu peito, os teus olhos cintilavam a vontade de me fazer feliz; teus cabelos eram as ondas do oceano que e eu navegava com minhas mãos pequenas, como navios, para ancorar nos teus olhos a nossa alegria.
Choveu. Os pingos cantarolavam uma canção de saudade. Os meninos, deitados no chão, dormiam….parecia não haver amanhã para eles, eu cravava os olhos no teto de zinco, e o pensamento voava, parecia borboleta batendo asas sobre um rio. Sei que nunca viste borboletas voando sobre o rio… na verdade, mãe, agora acho que vês… olho para o céu e te imagino estrela. As estrelas tudo veem. Vi uma borboleta amarela em voo solitário, desmembrou-se do grupo, hesitou seu voo contra o vento. Eu, na margem da praia, observei a delicadeza daquele bater de asas… tão frágil a vida, frágil como as asas de uma borboleta. Corri acompanhando aquele voo. O frágil inseto pousou em meus cabelos. Vi o bicho beijar-me o rosto e lamber-me uma lagrimazinha de alegria. Lagrimei porque acreditei que poderias ser tu, mãe, em forma de borboleta a acariciar-me os cabelos, a beijar-me o rosto. Tão frágil a vida, tão sinfônica a chuva… Os grãos de chuva me semeavam lembranças…
O frio vai me adormecendo o corpo, me fechando os olhos. Quem sabe, mãe, um dia eu te encontre num bater de asas de uma borboleta, e juntos voaremos sobre os mares que nunca sonhamos. Durmo para ouvir a chuva cantando sobre o telhado, tenho certeza que são tuas fantasias em gotas d’água a me cantar um sonho.
Douglas Nélio Lima de Oliveira é arquiteto e urbanista e escritor paraense, nascido na cidade de Belém, no ano de 1984. Estreou na literatura com o Romance Histórias de Chuva, o qual foi vencedor do Prêmio Literário Dalcídio Jurandir 2017, promovido pela Fundação Cultural do Pará. Teve poemas publicados na Revista Ver-O-Poema e Revistas Aspas Duplas. É também editor da Editora Folheando.
Simples e lindo.
Parabéns, Douglas