O ORNITORRINCO DO PAU OCO
j´étais le bruit d´absence
Fui pelo não ido das manhãs
em voo de cera e contemplação
perseguindo desvãos no Mundo
fui ao sumidouro dos pés
descendo pirambeiras
em abissais loucuras
fui o anônimo
inacabado de véspera
fui inumano
fui testemunha
de corpo ausente
das praticâncias e despudores
fui matraca indignada
fui mendicante
fui a farpa
arrancada da espada
fui consolo adocicado
para línguas ásperas
fui perene e dilatado
fui objeto
fui pão e circo
do apocalipse
fui pudico e privado
fui rasgado
e brocha
fui tardio
sem salva-vidas
fui obsceno
cosseno e outras peripécias
fui o de dentro
sorriso do redemoinho
fui o gênesis
da comédia humana
fui o esteta do insolvível
fui o engate
o torvelinho
Fui o poeta.
RÉGUA QUEBRADA
Não me importo
com numerar as penas do cisne.
Versejo com apetite.
Cato palavras de aluvião.
Sou sapo de língua comprida catando
mosca.
Insisto na ingenuidade da metamorfose.
(Só sei transformar sapato em borboleta)
ANACRÔNICO
Meu é este desperdício,
olhar que não se enquadra,
silêncio que espia na luz apagada,
o medo de não estar vazio
quando se acercar a luz do nada.
Meu é este dizer do tempo,
discurso interrompido,
lampejo, lamento,
saber inútil
o saco e a porra.
Meu não é o início,
mas o gargalo,
o rente, o arrebol sorvido,
este escuro – noite que se ressente do frio,
a fresta que observa,
o liberto, o estio,
ornamento dos dentes,
pavor, pavio.
Meu é o fim
justificando a queda,
o dedo ‒ semente das unhas,
o arvoredo brotando no interminável.
Meu é o absurdo,
o privilégio das horas,
o beijo contado,
o assobio, o assombro,
o firmamento inútil.
Meu é o desafio,
o preto e o branco
e este zelo
pelas coisas perdidas.
Jorge Elias Neto (1964) é capixaba, médico “eletricista do coração” e poeta. Livros: Verdes versos (Vitória: Flor& Cultura, 2007), Rascunhos do absurdo (Vitória: Flor&Cultura, 2010), Os ossos da baleia (Vitória: Secult–ES, 2013), Glacial (São Paulo: Patuá, 2014), Breve dicionário (poético) do boxe (São Paulo: Patuá, 2015), Cabotagem (Ilhéus: Mondrongo, 2016), Breviário dos olhos (Vitória: Edição do autor, 2017) e O Ornitorrinco do pau oco (COUSA-2018).
O Ornitorrinco do Pau oco e o Anacrônico, amei, calou gastou roeu, garquei, no gargalo do seio nude…