“será estranho dormir com tantos olhos” – Três poemas de Cecilia Furquim

 

 

formigas

não sei como começou
não sei ao certo
as formiguinhas pequenas
que rondavam a cozinha
o açúcar, o mel
escondiam-se nos vãos da construção
e fugiam diante da aproximação humana
não mais as vejo
as que tomam o meu lar agora
são maiores, vermelhonas
e não buscam só comida
tomam todos os cômodos da casa
inclusive minha cama
andam em cima de minhas mãos
pés, pernas e braços
sem a menor cerimônia
e como não picam
desisti de afastá-las do caminho
deixo-as subindo e descendo do corpo
fazendo suas rotas
numa convivência insólita
me vejo inclusive tomando todo o cuidado
o cuidado que elas não tomam
para não esmagar, bater, assustar
como se fossem elas a me ceder
a tolerância do seu
contato
me pergunto se um dia
elas podem invadir
meus espaços internos
boca, nariz, boceta
ou se quando me distraio
é de lá que saem

 

 

olhos santos

nossos dois rebentos
os olhos verdes dela
como a mãe
os olhos negros dele
como o pai
nossa casa
nossa cama
nossos hematomas

naquele dia eu vesti uma blusa com botões
naquele dia eu me confessei ao padre
ao padre que é puro amor
e pedi licença para abrir a blusa
diante de seus olhos santos
num instante a dúvida
tentação de vida
ou marca de ódio?

o padre não cerrou
os seus olhos santos
diante das manchas do corpo

abriu olhos de compaixão
e fechou punhos de defesa
bate em mim
que sou do teu tamanho

mas quem foi julgado
e levado à cruz
não foste tu

foram esses olhos-sóis
que não temiam o fogo
foram os olhos
da minha ressurreição

 

 

astros

a esta hora
em uma semana
querida
a sua noite será estranha
as vozes as paredes
serão estranhas
você terá três companheiras
com olhos
que podem ser compridos baços
âmbar ou barcos
será estranho dormir com tantos olhos

pequenos astros
convivendo num universo mínimo
com rotas e órbitas
obscuras

e você vai chegar
com os seus dois olhos ternos
a iluminar esse universo
sempre com seu giro
interno:

você viu a mamãe?
eu te amo muito
e o papai, já saiu?
minha querida irmãzinha
que bom que bom
filha cadê a sua menina?
preciso achar a criança
ela não pode ficar sozinha
promete cuidar dos meninos?
vou precisar de ajuda
muito obrigada, obrigada
quando vamos pra nossa
casa?

 

 

CECILIA FURQUIM é professora, pesquisadora, poeta e tradutora. Sua primeira carreira foi como atriz e professora de atuação. Depois graduou-se em Letras e tornou-se mestra em Literatura Brasileira pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas na Universidade de São Paulo, tendo defendido a dissertação Gota d’água: entre o mito e o anonimato (2013). Tem trabalhos de criação e tradução de poesia lançados e em desenvolvimento que contemplam a obra de Edward Lear a partir do paradigma tradutório de Haroldo de Campos. Entre eles um livro de arte com poesia e música (A Coruja, o Gato e os Filhotes, Melhoramentos, 2014) que recebeu a láurea de Altamente Recomendável FNLIJ 2015. Tem se dedicado à pesquisa de escritoras pioneiras da primeira metade do século XX, em especial Gilka Machado, Patrícia Galvão e Ruth Guimarães. É professora de inglês para crianças em cursos extracurriculares e participa de um projeto de ensino de português para refugiados na Casa das Rosas. Recentemente participou da antologia: Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018). Vai ministrar uma oficina de tradução para imigrantes na Casa Guilherme de Almeida em setembro de 2018 e lançar um livro de poemas autorais, Mulheres Salgadas, em breve. 

 

Please follow and like us:
This Article Has 3 Comments
  1. João Antonio Ginco Reply

    … Com rotas e órbitas… Das formigas, dos olhos dos astros.

  2. Regina gulla Reply

    Muito bom!
    Seus poemas acabam transitando pelo corpo da minha casa.

  3. Rubervam Du Nascimento Reply

    Ontem encontrei Cecília Furquin na Tapera Tapera durante e depois do 80 anos do fabuloso poeta Francisco Alvim. O cara do Elefante,lembram? Já leram? Aliás,,não somente eu me encontrei com Cecília. Também o poeta Ruy Proença e o Léo que teve o privilégio de ouvir de viva voz o Vinicius de Morais falando o poema O Operário em Construção para uma Assembléia de trabalhadores em São Bernardo. Confesso que estou atualmente ligado em poesia de maior fôlego que não seja apenas um discurso flácido e acomodado no coloquial. Quero ler mais a Cecília. Espero que venha logo o seu ‘Mulheres Salgada”. Prazer em conhecer vc Cecília.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Social media & sharing icons powered by UltimatelySocial