Prólogo
Dentro do armário ruínas o objeto guardado através dos anos talvez esquecido tão fundo e insondável que se refaz na descoberta da luz do dia o que não se conhecia não existia transparente e inimaginável um século completo no escuro o desconhecido e o que não se pode saber tal qual o vento assobiando na floresta ou a semente germinando rompendo a forma morta o caderno dentro do armário velho com seu cheiro de guardado parece uma goiaba preta em decomposição guardando seus brotos inesperáveis os besouros se alimentam dos restos e os olhos da caligrafia trêmula alguém escreveu e escolheu o silêncio numa casa de fazenda besouros pulgas grilos cigarras como espectadores cegos.
Sofro uma hipnose diante do caderno as ruínas colunas de um templo me atraem na mesma medida em que a podridão e a cegueira me repelem não há como compreender só através da invenção é possível delirar ordeno meticulosamente os grãos de areia da praia de uma ilha avaliando tamanho dureza peso e cor o vento que assobia varre meu trabalho insistente ajoelhado diante do meu paradoxo respiro pela boca o pó um sopro me diz que descobriram as flores tropicais enquanto conviviam com besouros pulgas grilos cigarras.
Seguro um diário uma abelha pousa leve em minha mão me arrepia a sede e separo presente e passado num gesto inútil entendo cada vez menos a duração bebemos acalentamos a ambos nossa sede fulmina a luz do meio dia e o que se chama século XX folhas avulsas desprendem-se do corpo e flutuam na brisa improvável de um quarto de apartamento sofro uma insônia ao costurar os retalhos daquilo que sei e vejo materializado o que me falta um assobio de floresta atravessa meus tímpanos e reverbera nos pulmões as ruínas têm um outro corpo que somos nós mesmos inventamos monumentos e ficções para dar voz ao calado claro reflexo no espelho do quarto as lagartas se alimentando das laranjeiras no quintal as formigas caminhando na terra quente as mariposas dormindo nos vãos escuros por toda a parte o caderno é um diário que eu jamais compreenderei a ideia de uma coluna de um templo me transporta para um sol que não é daqui a abelha busca voltar ao trabalho ao lar e fecho meus olhos.
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À luz inclinada de julho
quando a brisa se
desdobrar e a
fuligem pálida nuvem
onde se apaga
o existir transparecer
verei o interior
de si que também sou
eu espelho d’água
onde me invento.
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Pareceria uma invenção aquela ladeira e aquela outra ladeira quantas tantas ladeiras e aquela outra história aquela outra noite ou na verdade aquela história da noite do outro nas tantas ladeiras passando no meio da cidade passeando insone entre as ladeiras esperando suas pedras seus reflexos o frescor da madrugada até os pés reinventarem a história daquela noite entre tantas ladeiras a história da noite sem certezas a história da pele extensa sobre a noite sem certezas a história semeando ladeiras a noite atravessando a história a cortina fina tecido de brisa chuvisco a cobrir a vista o visível a cobrir meus cílios.
Gustavo Hatagima – paulistano, é mestrando em Educação pela USP e professor de educação infantil no município de Jundiaí. Edita a página “Algo deu errado”, fruto do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE) da Casa das Rosas/SP e está preparando seu primeiro livro, resgatando aquilo que os mortos um dia calaram.
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