FERNANDO ANDRADE – Como foi relacionar o ato fisiológico de mastigar-deglutir-ruminar ao exercício da escrita e por conseguinte da ficção? Que procedimentos destes meios (de ruminanSias) você usou na sua escrita?
SILVIA NOGUEIRA – Não foi premeditado. Para mim, a sonoridade do texto tem relevância. Leio o texto em alta voz para perceber se sobram palavras, qual o amalgama entre elas e que ritmo produzem. Cada escritura tem um ritmo próprio e, quando descubro a regência, o fluxo flui e as palavras se antecipam em mim, reclamando seu lugar, naquela potência. A questão do ritmo, percebo-a desde há muito no que escrevo. No ruminânSias, em específico, percebi a ânsia palavreira num fluxo-refluxo particular repleto de anáforas, frasanáforas, grafofagias num movimento reiterado que não se repete. As palavras se comem e se recomem e produzem novos sentidos – não um círculo, mas um movimento gerando outras vertentes (costurando sentidos que se vão tecendo e reiterando em um mesmo conto e entre os contos e nos contos dentro dos contos).
FERNANDO ANDRADE – Me passou a ideia nos contos (temas) de algo mecanizado\ operacionalizado, como se partisse de sua parte um crítica ao mundo burocrático, mundo industrial, mas utilizando uma narração\escrita que fosse também uma escrita automática em engolir toda a desumanização do homem. Fale um pouco disso?
SILVIA NOGUEIRA – Percebo algo do que você fala em determinados contos, como na empacotadora e no e-mail ao grande Khan. Mais uma vez, vejo a questão do ritmo amalgamando as palavras que desejam se expressar (cada conto ao seu modo, os ritmos são bem diferentes nesses 2 textos, por exemplo). Como se a regência tomasse a frente aspirando esgotar o limite e quase alcançar/tocar seu paradoxo pelo esgotamento de si. Então, perceber proximidades tão inequívocas e remotas fusionadas num dizer possível. Assim, a percepção duma narração mecanizada seria também regida pelo jogo (como mais explícita no e-mail ao grande Khan), por certa plasticidade e organicidade – mas não me parece que para “engolir toda a desumanização do homem”, e sim antes, encarar “x humanx” de frente, sem enaltecer o significado da palavra/do ente, aproxima-la da criatura tal como existe/rexiste (existe?).
FERNANDO ANDRADE – Há um jogo de duplicidades nas palavras e semântica onde elas potencializam uma narrativa polissêmica pelo som\ grafia, e elementos semânticos gêmeos. Como foi criar estes espaços bem lúdicos dentro dos contos?
SILVIA NOGUEIRA – O humor é essencial, mas nem sempre chegamos a ele. O jogo polissêmico arrisca-se e se desdobra por porosidades que, às vezes, chega a essas pitadas de humor. E quando há humor, o tom é outro e a leitura, pura ambrosia (no meu gosto, claro).
FERNANDO ANDRADE – Como foi usar toda uma linha de animalidade em seus contos usando imagens de bois e vacas. Há uma discussão sobre gêneros nesta relação de : animais\homem-mulher?
SILVIA NOGUEIRA – Costumo brincar simplificando que o livrim fala de bois, vacas e raios de sol. Mas fala de bichos muitos. Hay gallinas, porco, homo-peixe, pescosas, cavalos, penas pavonas etc. Um montão de bicho e partes de bicho. É que boi… “humm, toda pessoa traz um boi dentro”. É certo que há pinceladas dum feminismo em pauta. Por tudo, por ser mulher, pelos tempos em que vivemos, por uma questão histórica. Mas a discussão não é específica sobre gênero. Em “história pra boi dormir – uma voz, lado a., por exemplo, há um trecho que diz: “Os bichos são gente! Mais gentios até, no profundo das coisas, na retidão do de-ser da criatura. E a gente é bicho, bichos muitos variados, no de-ser nosso de criatura”. Então, aparentando/aproximando os bichos e as gentes… nossos parentes! No murmugir das ideias, sobretudo, o livro fala da máxima do brega: fala de amor. Da possibilidade de encontros, desta sede, do viver, das gentes: “Interessam as pessoas. E no geral, as pessoas não são gerais” … deixo aqui um trecho do conto “a carta”, que circula no booktrailer produzido pela Gê Martins e expressa bem essa ideia, essa sede:
la sed.
la sed..
la sed…
Da gente que mora na cada pessoa, da gente… se não, que seria?, quê? Quem?, na casa de apartamento?, quem?, entre paredes onde conto os dias a meu modo. E conto as horas a meu modo. E foco um instante do ar pleno e amplio um instante de ar plano. E calculo o peso do ar. E teço um instante plano. E entreteço um instante pano que me veste por dentro. E ouço os eletrodomésticos do corpo bkrtum crr crr. Eu ave plena em pano voo pela casa plana de apartamento. Vertical. No rastro rastro do corpo. No silêncio do corpo vivo vivo. Gastando vida nas fendas do tempo, nos espaços de grama pensamento, um corpo voz, corpo sombra, corpo silêncio, corpo eletrodoméstico bkrtum crr crr, corpo molino e raios de sol. Um corpo urgente. O corpo corpo, pra ele saber de mim.
As palavras vivas do corpo pra ele corpo gente saber de mim.
Pra eu saber de mim.
Pra.
Saciar a sede da gente na casa de apartamento. Saciar a sede da gente. Espero… E a sede desconhece certos verbos. Espero… e a sede suspira pelos dentros. Pero es, tarde tardes.
La sed.
La sed.
La sed
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