“Seu corpo retirado do tempo de dentro da minha lembrança” – Três poemas de Vanessa Molnar

 

 

RAYUELA

Eu te via surgindo rapidamente de dentro das minhas vísceras
Suas unhas plúmbeas escondidas entre as algas vermelhas dos meus cabelos
e um hálito de hortelã evaporando com o vapor barato dos azulejos

Noite de ventres alaranjados escorrendo entre meus dedos úmidos
Seu sexo estendido roxo como uma fruta madura na palma das minhas mãos.
Estações alternadas entre dias e noites cada vez mais quentes.
Um silêncio ventando manso pelo casaco roto pendurado no varal.

E eu te achava lindo fantasiado de marinheiro no carnaval de 76
listras azuis recortadas sobre um pedaço do mar encardido no tempo
tatuagens coloridas desenhadas sobre a pele morena dos nossos hematomas
suas mãos de pássaro desfazendo os nós apertados entre a fumaça dos meus pelos.

E nós saíamos desesperados pelas veredas e vielas do esquecimento
Onde Ofélias, Emílias e Diadorins seguiam vagarosas os passos dos nossos beijos
Escrevíamos poemas e brindávamos loucos em parques noturnos com estátuas lentas
Embriagados tirávamos nossos coturnos e desdobrávamos nossos sonhos
em   dedos deslocados com agilidade pela penugem dos meus seios.

Tempo das estrelas de onde a noite se precipita
Seu corpo retirado do tempo de dentro da minha lembrança
A valsa lenta dos corpos ressurgidos na cópula das nossas danças
Sua imagem de anjo negro guardada na memória de um guardanapo escuro.

 

 

 

EU

Sou do mês de janeiro

a morte me habita

nasci da tempestade

começo pelo fim

Eu sou filha de Saturno

e lavo as impurezas lilases

das carnes lubrificadas

que restam pelo caminho

Eu sou filha do tempo

carrego um escudo por dentro

atravesso insensível os campos

germino em corpos noturnos.

 

 

DNA DE JONAS

A ninguém mais causa desejo

o herdeiro de aparência insólita

que só recebeu do pai

a ordem de pescar.

Do seu corpo tatuado de ausências

espia um velho estarrecido

que se recusa a falar.

 

Ninguém mais causou desejo

no cavaleiro que contemplou calado

sua  herança de  miscigenação âmbar.

Seu sexo estendido entre os dedos

penetrou uma prostituta

que ele  ajudou a embalar.

 

A ninguém pode causar desejo

a imagem de um menino sem tempo

e sem pai para imitar.

De dentro do sermão do medo

surgiu o sonho de uma baleia

que ele pretende matar.

 

 

Vanessa Molnar nasceu e vive em Santo André, é historiadora e mestre em Estudos Culturais pela USP e autora do livro Crônicas de Uma Tara Gentil, editora Escrituras.

 

 

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This Article Has 1 Comment
  1. claudio menna Reply

    teu verso
    transverso
    tão torto e diverso
    reverte o reverso
    do meu

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