Fernando Andrade entrevista a escritora Eltânia André

 

 

FERNANDO ANDRADE A realidade que vivemos está tão absurda com tanta opressão que a literatura de certa forma perde espaço para esta vivência política que estamos experienciando. Teu livro é um testemunho documental desta fratura social que já estamos metidos há algum tempo. A voz para o combate à isto que vemos deve vir exclusivamente da luta pela democracia, pela liberdade em seus vários aspectos, ou a literatura pode ter espaço para tais posições perante a este caos?
ELTÂNIA ANDRÉ  A literatura não está desvinculada das dimensões política, histórica, social e cultural, pois caminha irmanada com a realidade em que estamos inseridos. Há na arte uma fonte natural de resistência e consequentemente de transformação, por isso regimes fascistas consideram os artistas como inimigos. “Guernica”, de Picasso é um símbolo de como a arte pode denunciar os absurdos da vida e da política.
Atestamos diariamente o horror que ocorre em várias partes do mundo e, nesse sentido, sou uma das tantas testemunhas desse Brasil que vive dias terríveis; eis que ainda não se libertou, consciente ou inconscientemente, da mentalidade escravocrata e coronelista, reforçando o apartheid entre classes, promovendo preconceitos que pareciam recalcados. Estamos enfrentando o caos e temendo retrocessos, teremos que ser incansáveis na luta pela democracia e pelo amor.
E que continuemos utilizando a palavra literária como um arsenal a favor da humanização, da reflexão, que ela nos proteja contra a estupidez, que tenha força contrária a massificação do pensamento.
Eu precisava escrever Duelos. A violência em suas várias faces inquietava-me como se fosse há séculos.

 

 FERNANDO ANDRADE – Trabalho, escola, questões de gêneros são desenhadas por você de forma crítica e no conto Matança de passarinho, o conto parece que tem uma veia de absurdo, pois a realidade ali chega num grau tão incompreensível que tua abordagem resvala quase para um grotesco social. Em cada destes contos qual foi sua preocupação em traçar um desenho do mundo contemporâneo? 
 ELTÂNIA ANDRÉ – Já estava escrevendo Duelos quando fui convidada para participar da antologia  Perdidas, a história das crianças que não têm vez, um projeto da editora Ímã, organizada pela Kátia Gerlach e o Alexandre Staut. Aborda a temática da violência com foco nas crianças que morreram vítimas de balas perdidas no Rio de Janeiro. Então, escrevi o conto “Matança de passarinhos”, parecia que o texto já estava borbulhando dentro de mim. Queria muito que a ficção fosse mais trágica do que a realidade, mas não creio que seja.
No conto que abre o livro, Uma das Mil e Uma Noites, em que a violência aparece mais explícita, quero ratificar que eu não inventei a barbárie, mas ela que inventou a história, pois basta atentar aos noticiários, para percebermos que o homem é o lobo do homem. O que eu tentei foi recorrer à ternura dentro da obscenidade. De fato, o narrador é tomado de afeto pela personagem Wanderléa e não consegue com a narrativa, mas também sabe que não há como salvá-la.
Sobre o conto Memória de Mulher, posso dizer que ele estava em mim desde quando entendi que eu era mulher, ainda na infância; quando percebi que haviam leis questionáveis e injustas e que haviam homens como o tio da narradora/autora que poderiam assombrar nós mulheres vida a fora.
O trabalho liberta, Garibaldi e Sono Profundo são contos em que os protagonistas são trabalhadores cooptados pela engrenagem sutil, mas feroz do universo do trabalho e seus totens competitivos tragando almas na engrenagem do capitalismo.
 Esses contos e os outros ganharam forma e vida diante da minha inquietação, a violência é um espanto que tentei, esteticamente, espelhar, pincelando algumas de suas formas e significados.

 

 FERNANDO ANDRADE A literatura, voltando a primeira pergunta, teria uma forma de confronto com a barbárie? Qual seria a diferença entre um livro mediado pela a intensa linguagem vibrante de crítica à sociedade, como o seu, e uma forma que se faz hoje das mídias virtuais\sociais de levar uma resistência ao fascismo, a legitimação da violência. O que cada um pode trazer para uma interdição desta ordem perversa que veio\ ou está vindo aí? 
ELTÂNIA ANDRÉ A literatura é um instrumento para a denúncia social, temos vários exemplos brasileiros, cito apenas alguns: Os sertões, de Euclides da Cunha, sobre a Guerra de Canudos; Não verás país nenhum, de Ignácio Loyola, obra que cabe muito bem no cenário atual brasileiro; Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, sobre a ditadura, assim como Olga, de Fernando Morais; também de Graciliano, Vidas Secas, sobre a seca e miséria; O hospício é Deus, de Maura Lopes Cançado, um testemunho em forma de diário da desumanização do tratamento mental no final da década de 60; Lima Barreto também imergiu nesse tema.  Enfim, há uma farta bibliografia a mapear esses contextos, mas fico por aqui.
Acima de tudo “os livros”, num resumo da aliança entre educação e cultura, é uma arma poderosa para o combate dos males que fragilizam o país. Investir em educação, investir em livros: mais livros, menos armas. Mais salas de aula e menos vagas nos presídios. Mais bibliotecas e menos hospitais psiquiátricos.
Quanto às mídias e as redes sociais, sabemos que têm maior alcance, são milhares de seguidores, e em tempo on-line, podem sim ser uma ferramenta para a luta e resistência contra o fascismo com o seu poder de mobilização. Vimos que as mulheres se organizaram no grupo “Mulheres Contra o Fascismo” e levaram milhares de pessoas às ruas do Brasil e do mundo em favor da democracia, da liberdade e contra toda forma de preconceito. É inegável a força das Redes Sociais e as mudanças que tem provocado nas relações humanas. Entretanto, é preciso separar o joio do trigo, pois elas servem para o bem e para o mal, pois não é raro encontrarmos grupos que se organizam também, por exemplo, para espancar homossexuais, negros e pessoas de outras etnias, instilando o ódio contra minorias ou parcelas vulneráveis da sociedade; também é utilizada para dilatar preconceitos e tantas outras mazelas.
Atualmente, a internet é força na campanha de candidatos, como vimos com Trump – fluxo de mensagens enganosas foram introjetadas na eleição americana. Esse fenômeno de sedução e cooptação mental também alterou o processo eleitoral no Brasil.  Percebeu-se, na campanha de Jair Bolsonaro, um pleito viciado por mensagens subliminares, fake News, versões e boatos infundados; uma campanha não pautada na ética e que foi flagrantemente financiada por empresário, para disseminar notícias falsas sobre seus adversários, o que tem instigado à intolerância e à violência.
Preocupa-me a questão do tempo, a velocidade das informações e o imediato retorno dos usuários. A incapacidade de discernir e de analisar às pressas o volume considerável de questões, muitas vezes polêmicas e complexas. É preciso mais cuidado, mais observação, questionamento e crítica. Isso dificultaria a manipulação da opinião pública. Outra questão preocupante é o excesso do uso do computador e das redes sociais, como: whatsApp, facebook, instagram, twitter, competindo com o convívio social, alijando-nos dos sentimentos, fragilizando as relações pela extrema ausência do contato físico e a ilusão ou aparência de uma amistosidade ou felicidade, que são enganosas no universo virtual.
Já a literatura convida o leitor a fazer associações e extrapolar os sentidos, a viver o tempo mais lento, porém presencial; a absorver paulatinamente as ideias e os sentimentos, também nos convoca a refletir sobre o mundo e sobre nós mesmos. Não dá para ler Metamorfose, de Kafka, e continuar a ser exatamente a mesma pessoa, eu não consegui. Não sairemos nunca indiferentes de uma grande obra. Ela mobiliza nosso espírito e nos instiga à inquietação.

 

 FERNANDO ANDRADEComo você talhou a linguagem para captar em cada conto os aspectos da crítica social que fazia, como foi modulando a voz do livro no decorrer da escrita?
ELTÂNIA ANDRÉ–  A Literatura que admiro se faz com linguagem; as palavras e suas plurissignificações, imagens, poesia e metáforas conduzindo a narrativa são essenciais na construção de uma escrita potencializada. Não tenho formação acadêmica na área das Letras nem mesmo participei de oficinas literárias; é através do meu contato com os livros e minha observação subjetiva do mundo que venho persistindo desde o meu primeiro livro a encontrar vozes com as quais me sinta cada vez mais confortável.

 

 

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Fernando Andrade, 50 anos, jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemoemetria , e Enclave ( poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie,  Editora Penalux.
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