Fernando Andrade – Há um interessante trabalho seu poético de topografar os lugares, pertencidos, como elementos semióticos dos poemas sempre atravessados ou pelo viés memorialístico, e também pela geografia sentimental do eu que narra os poemas. Me fale um pouco desta relação entre lugar e discurso?
Laís Araruna de Aquino – Nos meus poemas, a relação entre lugar e discurso é tributável daquela outra havida entre sujeito e mundo: o sujeito se percebe, a si mesmo, no mundo e isto implica tanto uma questão metafísica, que coloca entre parênteses o próprio mundo, como uma questão topográfica, a mais basilar, dos lugares concretos recorridos e experenciados.
Nenhum homem ocupa o mesmo lugar que outro no mundo, suas experiências não são intercambiáveis, suas trajetórias não coincidirão jamais. Cada homem, por assim dizer, possui a sua Ítaca. Possui a sua infância, os lugares por que caminhou e se lhe imprimiram na pele – como algo próprio, como uma vivência sua tatuada no íntimo.
Quando escrevo, busco resgatar ou reabilitar essa forma única de vida: profundamente individual – como as coisas e os lugares aparecem para o eu que escreve ou são por ele inventariados – e, ao mesmo tempo, demasiadamente humana, uma vez que todo e cada sujeito possui a sua geografia afetiva, como você disse.
Então, quando o campo, o bairro etc. aparecem nos poemas, são revelados no seu ser-para o eu lírico. Por outro lado, trata-se também, como eu vejo, de uma reabilitação poética da própria existência – e dos lugares recorridos e amados, uma tentativa de fundir vida e arte por meio da escrita.
Fernando Andrade – A cartografia dos seus poemas aqui contextualizados pelo narrador – poeta passam por uma infinidade de discursos – cruzados, como ações, afecções, memória do lugar, pertencimento do lugar, relações dialógicas com as artes e psicanálise. E mesmo assim tua escrita se mantém altamente imagética, discursiva, afetuosa e afetante. Uma curiosidade, minha. Quais tropos destes citados acima, você geralmente pensa primeiro ou inicia o poema? Como é este trabalho de alinhamento no processo do poema?
Laís Araruna de Aquino – Como outros poetas já o disseram (e penso aqui em Wislawa Szymborska e Ferreira Gullar), meus poemas nascem do espanto. Isto pode surgir de uma frase, de uma ideia, de um lugar ou uma experiência. Em realidade, da experiência desses fatores – singularmente ou em conjunto.
Quando isso ocorre, em momentos raros, o ritmo do poema me vem dado – ou, digamos, inspirado e, logo, influenciado por outras leituras – e, então, temos ora algo mais telegráfico, ora mais lírico ou mais reflexivo/especulativo etc. Não-raro, no entanto, o ritmo tem que ser escolhido e construído. E isso gera uma tensão entre forma e conteúdo.
Mas, respondendo diretamente à pergunta: não existe uma hierarquia entre ou uma preferência por pontos de partida. Estes, por assim dizer, me escolhem. Às vezes, no meio de uma conversa, alguém diz uma frase que me comove; noutras, é um par de chinelos ou a luz do verão. Como disse Bandeira, há poesia até nos chinelos.
Fernando Andrade – Há um interessante cruzamento sobre a escrita sobre o errar, ( errante), que muitos escritores europeus como Robert Walser, Villa-Matas, trilham em suas narrativas, quase como um desenho do homem pós-moderno, num mundo que já não é tão contemporâneo, pois este homem é quase um exilado das relações sociais, e “flutua” perante a sua e de outras vidas. Você já leu estes autores e sente alguma semelhança com tua poética?
Laís Araruna de Aquino – Essa pergunta vem muito a calhar. Para começar, eu terminei de ler Ar de Dylan (de Enrique Vila-Matas) a semana passada, o que é uma grande coincidência. E, no começo deste ano, li Os irmãos Tanner, do Walser. Já havia lido anteriormente a ambos os autores, a quem admiro bastante e amo.
Eu não saberia precisar a influência deles nos meus poemas, mas certamente percebo várias semelhanças. Com Vila-Matas, há essa questão da intertextualidade, do dialogismo etc. Com Walser, uma poética do errar – da errância, do perambular, embora o nosso pano de fundo seja bastante distinto.
Isto é, Walser me afeta menos como sintoma de uma época – do exílio de que você falou – do que como uma vontade (ou uma voz) de sentir o mundo mais livremente, com a insolência e a indolência que seus personagens transpiram. De Walser, tocam-me o alheamento às hierarquias valorativas da sociedade, os belos diálogos – quase solilóquios – e a temática do absolutamente nada, do contemplativo.
Quando penso em Walser, penso em Simon (personagem d’Os irmãos Tanner) andando pelos campos, vendo seu irmão pintar, vivendo frugalmente etc. E de tudo isso colhendo o que o dia maravilhosamente oferece aos sentidos.
Fernando Andrade – Me conte um pouco sobre a sua participação no prêmio Maraã de poesia feito pela editora Reformatório? Como chegou a ele, Qual é a importância destes prêmios para a cena poética nacional?
Laís Araruna de Aquino – Eu tive notícias do Prêmio Maraã de Poesia pelo facebook. Não me recordo se já conhecia (seguia) a Ed. Reformatório ou se uma coisa levou à outra. Por certo, alguém compartilhou a notícia sobre o prêmio, eu li e acabei me inscrevendo.
Até então, eu só tinha publicado alguns poemas em revistas digitas. O prêmio foi uma oportunidade concreta de dar um corpo ao que tinha escrito até o fim de 2017 e achava que valia a pena estar em um livro. Embora eu não saiba dizer sobre o seu alcance, é certo que ele me deu a chance sair da bolha do facebook.
Quanto à importância dos prêmios para a cena poética nacional, acho que eles servem para dar maior visibilidade a quem escreve.
Fernando Andrade – Agora uma pergunta mais pessoal, O que é a Polônia para você? O que ela te atravessa?
Laís Araruna de Aquino – Quando li a pergunta pela primeira vez, achei que havia um erro. Pensei que a pergunta, em realidade, fosse: o que é a Poesia para você? (risos). Pois meu conhecimento sobre a história da Polônia é praticamente nulo e nunca estive no país.
No entanto, meditando sobre isto, acho que posso dizer algumas palavras. A Polônia, para mim, não coincide com seu território marcado geograficamente no mapa, nem com sua história ou seu povo. A Polônia, para mim, é Wislawa Szymborska, Adam Zagajewski, Czeslaw Milosz e o decálogo de Kieslówski.
Há um tempo atrás, li “O testemunho da poesia”, do Milosz, e fiquei muito impressionada quando ele falou a respeito da poesia polonesa do pós-guerra, a qual se tinha aproximado da vida, modificando as fronteiras com a arte. Isto é: a poesia passou a expressar ali as necessidades e os desejos mais básicos dos indivíduos, suas vivências mais cotidianas. Sendo que, de tudo que eu lia, percebia um brilho novo nesses elementos comuns da vida.
Noutras palavras, o que me tocou na poesia polonesa que leio e li foi o afastamento das elucubrações etéreas da palavra pela palavra e sua busca apaixonada do real: “a esplêndida vida (que) surge como uma queda de água na primavera”. Entendo que é isto o que me atravessa e a meus poemas.
Por fim, apenas umas palavras sobre Kielówski. Não sou conhecedora da sua obra. Mas o 8º filme do decálogo me tocou profundamente. Numa passagem, uma senhora se dirige a uma outra mulher, mais jovem, e pergunta-lhe, após a noite em que discutiram brevemente a existência de Deus, se esta havia rezado. Isso me pareceu muito cativante.
Entendo que a arte, em geral, possibilita-nos formular essas questões fundamentais – e irrespondíveis – e estar ao abrigo delas, como seres a quem o “não sei” impulsiona a um destino aberto, não consumado, e, por isso, não previsível. É a eterna novidade de se estar sob o sol, que me lembra Wislawa.
Por fim, gostaria de dizer que as perguntas formuladas demonstram o grau de atenção da sua leitura e isso me deixa muito feliz. Apenas para ilustrar, transcrevo um poema que, no meu sentir, diz sobre dos temas de que falamos aqui. Chama-se “Ode à manhã”.
ODE À MANHÃ
a manhã levanta do horizonte
tenho vontade de escrever e a cabeça não dói
está nublado e chove um pouco como se
deus molhasse as pontas secas
do coração entrincheirado da véspera
ontem quando olhei o céu estrelado
só pude ver o vazio na cavidade do meu peito
mas a manhã veio como uma certeza e uma novidade
agora a água cessou, um hino se inicia
os pássaros dão glória e se lançam no azul
deus abre e fecha a sua obra
ou são os homens que esquecem a criação?
ao poeta cabe apanhar a luz do ser
e dar-lhe o cristal do nome, onde a imagem fulgura
e deixa-se permanecer como um estremecimento –
compete atentar para a anunciação,
os raios do sol quebrando numa geometria
concreta sobre a folhagem,
e deixar que a nossa alma se encha
de alegria ao crepúsculo, ao refluxo das águas
ou à chegada do sono após a exaustão
às vezes, lembramos nossos corpos imperfeitos
e sentimos exalar a tristeza da finitude
mas damos graças – ou deveríamos dar –
por ter acontecido de estarmos aqui
como um lampejo entre os dias e a noite,
entre um afeto e uma cicatriz,
entre Sêneca e Walser,
as flores do campo e o estio,
sendo por tudo tocados nesta alternância
e a tudo tocando
aconteceu de estarmos aqui,
neste instante fecundo,
salvo para sempre porque votado ao esquecimento e ao fim –
ao invés de vagarmos anonimamente e sem rumo
como a poeira eterna do universo
Fernando, excelente entrevista!!