por Alufa-Alicuta Oxoronga
Poeta, escritor, ensaísta e crítico literário
“Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido.”
Fernando Pessoa
Esperança-me a vida. Desde os tempos de minha meninice, de minhas molecagens, a vida me acaricia a alma por um amanhecer estrelado de nuvens e pássaros. Não sei porquanto tempo a vida me dará estes gostos e gestos de viver. Tampouco sei por quantas eternidades de dias me apanharei tamborilando o fluir destes sonhos em minh’alma. O que sei (mais por teimosia que por subserviência) é que os cânticos de amanhecer são sementes de esperanças atravessando tempo, coisas, bichos e gente. Por isto a minha urgência em existir. Dentro de mim o viver se insurge inviolavelmente pânico. Traz lambeduras de fogos, urgências de peixes, imensidões de voos e semblantes de vento.
Foi no experenciar das encarnaduras do esperançar da vida que passei a gostar de poesia. A buscar em seus meandros o não dito das coisas. O sobrevoo silencioso da fala nas não-acontecenças do existir mundano. Em um desvelo de coisas ensimesmadas ou em des_nudamento factual do des_prover do tempo pelas fissuras do nada-ser. E na sacralização destas acontecenças terminei por conhecer Ana Meireles e Marcos Samuel Costa, autores deste “Semblante de Nós”, livro feito a quatro mãos e que nos trás a sensação belíssima de um arrebatamento musical. Tão belo o é. Lê-lo, provocou em minha alma a sensação de estar ouvindo as variações de tons e temas de uma sonata.
Assim, como se estivesse ouvindo as oitavas de um piano, com seus movimentos estruturais rápidos e lentos modulando minha audição, tomei este “Semblante de Nós” em minhas mãos e, logo de entrada, “quando fechei meus olhos, a beleza já não era mais a mesma, havia dor banhada em incertezas…” Ana e Marcos me ofertavam seus poemas em pétalas de cores lilases que invadiram “meu corpo feito um rio, inundando-me (…) como um deus que a tudo governa”. Tomado por emoção permanecei por um longo e demorado tempo neste primeiro poema. Em exercício de silêncio. Olhando as modulações do poema. Fazendo-me carne dele “como um rio em direção ao nada”.
Sentindo o ritmo simbólico e alegórico dos poemas em meu ser, em semelhança de encantamento, continuei a folhear, tátil e visualmente, os dois mundos de Ana e Marcos.
Mundos estes feitos de reentrâncias e significâncias de existir. Que me fez amar com mais veemência a pedra/lava/poética das iluminanças de minha sonhadura humana, “como sombra de um segredo a esconder” e “que recluso ficou entre paredes, no entremeio das vozes que silenciaram (…) entre as flores amarelas de um jardim arcaico e granito purpúreo, a gritar bruxuleante ao vento”, exalando “dos silêncios os vãos da solidão”. Este “Semblante de Nós”, em cânticos de inventos, preencheu-me de alegria.
Vê-se um embelezar da vida do primeiro ao último poema. Desafiando-nos a um demorado olhar. A apalpar, carinhosamente, a corporeidade de cada poema. Trazendo
para fora de seu corpo/verso a revelação das encarnaduras do seu universo de dentro. Assim são os “sonhos não-palatados” de Ana e Marcos Samuel. Vem aos nossos olhos “como a linha reta de um rio”, mostrando-nos “pelo espelho d’água, o reflexo (…) e pela face (…) a linha de mundos não visitados”. Que nos faz “sentir a força do vento e dos ramos nutrindo burilamentos”, em dádivas de afeto no “semblante de nós”. Mesmo que “os sonhos que não foram plantados e hoje esvaziados, vazam nas memórias das horas”.
Por isto gosto tanto de música quanto de poesia. Ambas se completam em meu ser.
Sempre que posso escrevo ouvindo a sonata numero 5, em dó maior, para piano e violino, de Beethoven, composta em três movimentos (Alegro Molto e com brio, Adagio molto e Pestissimo) cujos acordes emanam vigor e emoção. Esta foi a sensação que me veio ao ler este “Semblante de Nós”. Ana Meireles e Marcos Samuel apresentam uma poesia moderna e enxuta. Traz em si a capacidade de libertar os sentimentos e as emoções que permanecem enjauladas em nosso ser, “em uma luxúria de fazer céu”. E “que ao homem faz em (canto) gemer, precipício de insaciedades”.
O duo poético proposto por Ana e Marcos, neste “Semblante de Nós”, reflete a existencialidade empática dos autores. Cujas intenções de palavras embeleza o mundo em uma composição singular. Abisma-me tanto que, em “evocação” me interrogo:
“Será possível, sempre e sempre, o sereno, a calmaria, este verso que agora no meu peito rima? Seria possível, este ruflar de asas evocando vida neste campo molhado e deserto de voos?” Todo o livro é uma “ geografia iluminada por atalhos”. Um “sonho” em que “cada parte deste sonho é feito carne de peixe – espinha atravessada na garganta – escama arrepiando a minha pele”. Folheio suavemente o livro em orquestrado espanto.
Nos seus trinta e quatro poemas denota-se a instrumentalização poética de cada autor.
Um casamento de ideias e sonhos. Como se a transcrição de cada partitura/poesia nas oitavas de um piano exigisse a participação do leitor nas tessituras de todos os seus versos melódicos. Em que o maestro Marcos Samuel e a maestrina Ana Meireles regessem “a própria distância percorrida em saudade”. Apontando “o caminho onde” se encontra “a flor plantada nos meses de outra estação”. Levando “para longe o que antes foi e não é mais”, mas que permanece “na vívida impressão de um raio que ricocheteia o céu e acorda os infantes pássaros que adormeceram no teto das minhas memórias”.
Não sou dado a gostar de trabalhos a quatro mãos. Não me soa agradável. Pois “sofro da minha solidão” de escrever. No entanto, este “Semblante de Nós” me surpreendeu.
Foi exitoso em seu propósito. Ana Meireles e Marcos Samuel nos dá o livro “a servir de isca aos desejos da carne”. O moldar das sintaxes nos des_locamentos poéticos nos “dias idos e quentes de vida (…) são terreiros da magia de re_inventar sonhos (…) que nascem à beira das palafitas” e que acende dentro de nós “a fria chama da saudade”, inundando “a diversão inocente dos quintais (…) invertendo nosso jeito descontraído de vestir”. Todo o livro é um “sono de uma tarde inteira setembranda no frescor do amor”.
A poesia é um caminho pedregoso. De difícil acesso. A duras penas percorremo-la. Ana e Marcos, neste “Semblante de Nós” nos dá uma lição. A subjetividade poética transcende qualquer barreiras (ou obstáculos). Em-si e Para-si se ajusta bela. No interno de sua ontologia se coloca em equivalência e semelhança. E construindo a sua própria transcendência “cataloga nos olhos luz às palavras, atravessa longitudes vastas”. “E os sonhos a que se abraça névoa impõe no dobrar-se à turva cor das águas”. Assim é a poesia contida neste belíssimo livro: Um “vento forte” deslocando “o copo vazio que recolhia da boca a secura das palavras”. Traz em si, o justo “tempo do cozimento”.
Sirvam-se, em forma de um quiasma literomusical de amor.
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