Qual é a individualidade de um pássaro? seu canto, suas plumagens, seu voo? O que faz com que nós os narremos sob a ótica do narrador, eu, ou numa terceira pessoa? Há um colorido de fábula num conto passaredo? Sinto que ao pegar uma coletânea de voos distintos de narrações, o voo é sempre diferente de um e de outro. É como se coubesse um afeto em cada história particular de um passarinho. Mas como se narra uma história dessa? A duras penas? Não com a leveza da levi-dura-ta-ção…
Edna Rezende não cria propriamente um fabular conto de pássaros, no seu A duras Penas, Editora Patuá. Embora haja um fluida moralidade perpassando cada conto seu. A fábula ensina, Edna já prefere experienciar um mote, um conto sobre certa ave. Há certos pássaros que preferem narrar na primeira pessoa, como se fosse a sua canção, a sua voz. Partem do testemunhal como a Cacatua, o coleiro, Joaninha de barro, este por sinal, de apertar o coração. Coleiro faz uma bela composição antinatural, revertendo símbolos ou mitos, colocando amizade de um pássaro com uma cobra. O pássaro na gaiola, e a cobra livre. A rica matiz simbólica perpassa o conto de uma melodia diáfana.
Mas e quando os narradores se distanciam da voz ou do canto da ave? Como perpassa a afetividade deles? Até numa galinha meio paralítica, o afeto recai como um esteio do concavo carinho. O engano aqui talvez seja camuflado de intenções pormenores… Tanta galinha para se pegar…
Edna para cada conto em terceira pessoa, prepara uma afetividade própria do dono ou amigo para narrar seu pequeno portentor de asas. Como o Melro, assuz preto, que a narradora por sinal tem um pai caçador de gatos… A simbologia aqui jaz tanto no bicho quanto numa provável alteridade felina, caçadora…
São tantos contos pintados como uma aquarela por Edna, mas dois me chamaram bastante atenção. O do Pintassilgo e do Pardal. O primeiro pela completa falta de laços entre a narradora e o pássaro. O animal como matiz identitária, oprimido pela personagem-fala. E o pardal talvez o mais belo em termos de imagens poéticas, onde quase num desenho japonês, vemos aquela concentração de imagens e ação dentro de um pequeno pedaço de novelo desfechado. O final parece estabelecer toda uma linguagem para o conto todo que não é atravessado pelo pássaro em sua corporeidade. Mas o final, perdão, pardal, é lindo, como o livro todo.
cotação: excelente
FERNANDO ANDRADE, jornalista, poeta e crítico de literatura. Faz parte do Coletivo de Arte Caneta Lente e Pincel. Participa também do coletivo Clube de leitura onde tem dois contos em coletâneas: Quadris no volume 3 e Canteiro no volume 4 do Clube da leitura. Colaborador no Portal Ambrosia realizando entrevistas com escritores e escrevendo resenhas de livros. Tem dois livros de poesia pela editora Oito e Meio, Lacan Por Câmeras Cinematográficas e Poemometria, e Enclave (poemas) pela Editora Patuá. Seu poema “A cidade é um corpo” participou da exposição Poesia agora em Salvador e no Rio de Janeiro. Lançou em 2018 o seu quarto livro de poemas A perpetuação da espécie, Editora Penalux.
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