Fernando Andrade: Teus contos entram num universo linguístico e de lugar (Minas) muito cheio de nuances sobre relações de linguagem-e-entorno. Mas você opta por desenvolver personagens que se acionam derrotados ou até certa forma embaraçados socialmente. Esta distinção entre forma e conteúdo achei bem interessante no desenrolar dos contos. Fale um pouco disso.
Rafael Antunes: Embora alguns dos contos que formam o livro tenham como “entorno” paisagens notadamente mineiras e, neles, como você bem soube descrever, há certa contaminação da linguagem por essas mesmas paisagens, a maioria dos textos foram escritos em situações de completo desterro. (Primeiro em South Hadley, uma pequena cidade gelada no interior do estado de Massachusetts, onde comecei a escrever o livro.
Mas depois em Florianópolis, Rio do Sul e Fortaleza). E talvez tenha sido o deslocamento para esses outros entornos, ou outras paisagens, aquilo que serviu de moto para a construções desses personagens que, ou bem perseguem uma loucura “em direção à ruína”, tal como consta na orelha do livro – como é o caso do que ocorre nos contos “A última palavra do meu avô” e “Fevereiro de 2006”– ou estão de tal forma enredados na derrota, que preferem se deixar onde estão, produzindo um tipo de subjetividade que retira o seu traço singular do que Orhan Pamuk, ao comentar “Memórias de subsolo”, nomeia de “alegrias da degradação”. Ele se refere, obviamente, àquelas criaturas que não se assustam com a derrocada, não porque têm coragem excessiva, mas porque acham no que Pamuk chama de descanso – seguramente um descanso na derrota – uma certa realização do seu ideal de vida boa.
Toda essa reflexão está sendo feita a posteriori, mas hoje creio que aquilo que faz transparecer em vários dos contos essa temática, é certa percepção de que o pensamento dificilmente pode se realizar na euforia e na aceleração – esses dois traços de nosso ethos urbano contemporâneo que, diga-se de passagem, a medicina já transformou em categoria nosológica, dada a capacidade desses estados de se tornarem “ansiedades medicáveis”.
Ao tentar construir personagens obstinados com a derrota, talvez eu estivesse tentando produzir a imaginação de um tímido antídoto a um “entorno” que, de nenhuma forma, me agrada, qual seja, aquele que motiva e nutre um tipo de subjetividade que valoriza a “alta performance”, “o alto rendimento” e “a majoração sem limites de nossas qualidades”. O personagem Emílio Trentini, por exemplo, é um artesão que nunca termina um só cesto; O personagem de “Brevíssima apologia da derrota” é um costureiro que quer escrever “notas de fim” e não divide a mesa com vencedores. Os contos são um elogio da derrota na medida em que dão a ela uma certa dignidade. A inspiração para o exercício é a “história universal da infâmia”, de Jorge Luís Borges, que me foi apresentado pelo amigo João Paulo Ayub há quase uma década.
Fernando Andrade: Minas é um estado onde a relação entre civilização e (paraíso) é muito acentuada. Tudo os movimentos de pessoas nos centros urbanos, e as grandes vastidões de silêncio e vazio são muito fortes. Isto teve algum impacto em seus personagens?
Rafael Antunes: Vou responder essa pergunta conectando-a à anterior. Eu vinha dizendo que a maioria dos textos foi escrita fora de Minas. Mas, em absoluto, isso não quer dizer que este outro traço sobre o qual diferentes contos insistem, isto é, certo vacilo no ato fala, certa hesitação programada no verbalizar qualquer coisa e, acima de tudo, uma tartamudez voluntária, não tenha relação com um certo modus vivendi nosso que, como você muito bem notou, prefere as “as vastidões de silêncio” à fala franca (a parresía) e à fala solta. Tenho um pouco de dificuldade de fazer generalizações sobre qualquer coisa como o “espírito do lugar”, mas lembro-me que muito recentemente, em uma visita ao poeta mineiro Guilherme Mansur, conversávamos precisamente sobre esse assunto. Na ocasião, eu irresponsavelmente especulava sobre as relações de continuidade entre as desconfianças mútuas entre mineradores no auge da exploração aurífera e certa desconfiança – daí, talvez, o silêncio – de um mineiro prototípico, imaginário, ouro- pretano. Creio que alguns desses traços, possivelmente, aparecem nos personagens.
Fernando Andrade: Você não se guia por classificações de gêneros, não há uma delimitação de cada conto tenha uma marcação nítida, mas sua voz, é muito reconhecida na parte da linguagem que se mimetiza ao lugar da fala – lugar onde se enovela a ação. Fale um pouco disso.
Rafael Antunes: Você tem completa razão. Não há um gênero definido e a própria unidade temática é posta à prova por contos que se distinguem muito dos outros. Contos nos quais o tema da “derrota” está quase que completamente ausente ou que se constroem em um universo muito próximo do fantástico, como é o caso de “Na sanga das taturanas”, por exemplo.
De fato, há uma tentativa de mimetizar certo modo de narrar do personagem que é objeto do conto e essa estratégia foi um recurso que adotei conscientemente, em particular a partir da escolha mais frequente por narradores personagens. No conto “Catálogo das minhas desgraças”, esse esforço mimético é levado às últimas consequências, de tal forma que visando replicar o ritmo do relato de um indivíduo que vê a mãe ser assassinada e que volta à cena do crime – em Tefé, no estado do Amazonas – decidi trabalhar com frases curtas, com poucos conectivos, em um exercício de escrita quase telegráfica. Os conjuntos de descrições também foram organizados obedecendo ao mesmo princípio: a produção de um texto narrativo que também é uma “lista de eventos”, um catálogo, por assim dizer.
Tartamudo, o último conto do livro e o primeiro a ser escrito, tem trechos nos quais há a opção por uma descrição que se aproxima de um estilo quase naturalista e chego a brincar com isso no momento em que nomeio o bordel, onde se passa a maior parte do conto, de “ Edifício Dr. Frederico Zola Bernardes”.
Fernando Andrade: Você usa muito bem os grandes espaços geográficos não só como locação, mas ação dos personagens. No conto A fúria do Cancro ele é tão físico em sua ação descritiva de movimento da personagem ,ela parece que se desloca por um espaço não muito bem definido, e você coloca a foto de estrada de terra que me chamou muita atenção, e há na foto uma senhora com mala. E você usa esta mesma foto na capa do livro. Que relações há entre este conto e o livro como um todo?
Rafael Antunes: Este conto foi escrito na ocasião da morte da minha avó, de quem eu era muito próximo e com quem convivi muito na infância e na adolescência. Nos meses que antecederam a sua morte, ela vinha perdendo a força na voz e já não conseguia comer direito. Não era um câncer, como é a doença que acomete a personagem do conto em questão, mas era algo igualmente agressivo. Depois de sua morte, fiquei engasgado com aquilo muito tempo e a primeira coisa que escrevi foi este texto. Imaginei uma personagem idêntica a ela, que caminhava pelas ruas de Ouro Preto com a intenção de se matar, antes que ficasse completamente debilitada, mas que não conseguiu fazê-lo por não achar lugar apropriado. Inicialmente, o conto trazia locais conhecidos por todos na cidade, com a Praça Tiradentes, a Rua das Flores e a Rua da Zona mas, depois, durante o trabalho de revisão, limpei o texto de quase todos os nomes de ruas identificáveis. De fato, o leitor acompanha a sua caminhada pela cidade até voltar ao leito, onde encontra uma morte medicalizada, repleta de enfermeiras, bacias, panos brancos e desinfetantes a limpar os cheiros do fim.
A foto que vai na capa foi tirada nos arredores de Diamantina, nos primeiros meses de 2010. Ela remete a uma certa dimensão diaspórica e, como você bem notou, está colocada ali logo depois do conto para compor com ele uma imagem de “renúncia obrigatória da vida”. Com a imagem talvez estejamos diante da “escolha feliz” de quem não aceita ser transformado de pessoa em apenas-corpo em uma máquina hospitalar qualquer. A “escolha feliz” que a mulher da foto faz – com perdão pelo trocadilho – é a derrota como “escolha”.
Já que mencionei a “história universal da infâmia” na primeira resposta, tomo a liberdade de terminar com um trecho do prefácio de 1954. Ao apresentar o livro, Borges observa: “O homem que o compôs era bem infeliz, mas se entreteve escrevendo-o”.
Acho que partilho com ele este espírito. Se não é possível expurgar a derrota, se não há pensamento possível fora de certo pessimismo, que sobre ao menos o riso, mesmo que esse seja o riso irônico diante da descrição das existências infames, que são as nossas, que são todas.
Fernando Andrade – crítico literário, poeta e escritor, autor de 4 livros. O seu trabalho mais recente é Perpetuação da espécie [Editora Penalux, 2018].
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