A menina que há em mim dorme ao relento
Perdida no vento
À espera da asa
do anjo que a rejeitou
À procura
De um desejo largado de uma estrela
De uma pérola de ternura
De uma voz embalada no cabelo
A menina que há em mim
Ficou sentada no pial da infância
Onde começou a mágoa
Enjeitada de si
Perdida no escuro
No canto dos beijos
violentados
A menina que há em mim
vive à espera
que lhe estenda
a minha própria mão.
II
Estão tão longe os meninos que sucumbem de fome
os que dormem em cima das grades do metro na cidade nua,
os que remexem nos caixotes do lixo à procura do que não queremos
os que trabalham de manhã à noite por um prato de comida
os que snifam cola em sacos de plástico
tão longe os que são servidos em bandejas de luxúria em hotéis de luxo
ou se prostituem nos becos por meia dúzia de tostões
tão longe os que são violentados, torturados, mortos, no desaconchego dos lares…
tão longe os que matam com a crueldade que os adultos lhes ensinam
tão longe os que morrem de sede junto aos poços que ajudamos a secar
tão longe as que são deitadas ao lixo porque nasceram mulheres
os que nascem deficientes e apodrecem em lares
os que jazem no chão como ratos..
tão longe as imagens dos que servem de alimento aos abutres,
dos mutilados, dos que nunca tiveram sonhos, dos que ardem,
tão longe os que têm sede de palavras
tão longe os que nunca tiveram colo
tão longe os que nunca disseram mãe
tão longe da nossa cama,
tão longe da nossa mesa,
tão longe do nosso abraço…
tão longe…
III
O retrato
No primeiro dia olhei estupefacta para a moldura onde estávamos tu e eu
No segundo dia rasguei com raiva a parte do teu rosto
logo a seguir tornei a colar- te ao meu lado.
No dia seguinte cortei-te em pedacinhos e já não tinha volta.
No quarto dia tirei todos os teus retratos do meu quarto
mas deixei ainda os que estavam na sala.
Mais tarde escondi nas gavetas os restantes
Deixei apenas um em que estavas a segurar o teu filho ao nascer
Depois, nem mesmo esse ficou.
Depois nos dias seguintes
E nos dias seguintes
E nos dias seguintes
Os vestígios se apagaram…
Mas numa carteira velha, a preto e branco,
descansa ainda, adormecido, o teu retrato de menino…
Maria Jorgete Teixeira nasceu no Cunene, Angola, em 1949.
Escritora e licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses.
Muito obrigada pela publicação.