“puxando pela raiz cada cor que se sustenta” – Três poemas de “Passagem”, de Amanda Vital (Editora Patuá, 2018)

 

verborragia

as palavras me engatam a garganta pelas úngulas
escalando paredes massudas de vazio acumulado

sinto o amargo dos farelos as camadas raspadas
a saliva confinada nas grossas grades da afasia
sinto cada gota desse sumo chorumoso e espesso
desgarrado à força na degeneração dos silêncios

tento cobrir a boca reprimir o ímpeto delinquente
na hipótese vã de fazer descerem os demônios
chego a engolir pressionar empurrar impelir sigilos

mas vozes correm em desespero entre meus dedos
explodindo faringe laringe mandíbula cordas vocais
fere a carne cogula o verbo na arma que impunha

as palavras me sepultam a mudez pela insistência
arrebentando pontos repetidos de eternas suturas

 

 

chama
(para Lara)

nem mesmo a crosta cinzenta dessa cidade
feita de ferro, brasa e sangue, nem mesmo
as chuvas de fuligem que tudo monotonam
puxando pela raiz cada cor que se sustenta
ou até esse cheiro ainda fresco de massacre
fugindo das memórias e das reminiscências
é capaz de te fazer algum dano, minha irmã
nada disso consegue penetrar seu invólucro
você é um campo livre e inteiro transborda
pelos poros toda a luminescência constelar
daqueles céus que os nossos antepassados
tentaram nos deixar como lembrança etérea
e dou a você o que me cabia, irmã minha:
eu gosto de ver sua alma trajando estrelas
essa chama tão inquieta desafiando a urbe
numa vanguarda de riso e de desassossego
fazendo reacender cada partícula de vida
desde o chão aonde nossos pés alcançam

 

 

segunda mãe
(para Neide)

segura forte minha mão, Neide
vamos descer o morro de casa
redesenhar as rotas da infância

colher as menores flores da rua
e espalhar pelo chão da padaria

despedaçá-las pétala por pétala
colorindo cheiros em sinestesia

eu aumento o volume do rádio
e você dança só, com seu pano
envolto no ombro e nos braços

canta alto, andorinha em moça

me ensina a ler de novo, Neide
essa vida me cegou os princípios
já trago olhos tão desencantados

se eu chamar seu nome na praça
você vem me encontrar sorrindo
e com as mesmas mãos de alho?

 

Amanda Vital (Ipatinga/MG, 1995) cursa Letras com ênfase em Estudos Literários na UFMG, em Belo Horizonte, transferida da UFPB. Autora dos livros “Lux” (Editora Penalux, 2015) e “Passagem”; (Editora Patuá, 2018). Entre 2014 e 2016, participou do grupo de declamação Aedos, em João Pessoa. Atualmente posta seus poemas nos blogs “Amanda Vital Poesia”, “Equimoses” e “Zona da Palavra”. Publica videopoemas e declamações no Youtube. É colaboradora da revista Mallarmargens.

 

 

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