Fernando Andrade entrevista a poeta e escritora Cinthia Kriemler

Fernando Andrade:  Seu livro de poemas tem por sinal ao leitor, um tipo de signo de fomentar uma alteridade do olhar. A coisa tá tão louca que se apaga ao invés do cigarro no cinzeiro, a fala do outro, sua voz, sua identidade. E parece que não há ficção que dê jeito, mas seu livro parece que se afronta com isso e cria um belo libelo contra o discurso da força-violência, do calar o outro pelo discurso-ideológico. Fale um pouco disso.

Cinthia Kriemler: Exercício de leitura de mulheres loucas é um livro que fala da mulher como protagonista das suas próprias possibilidades. Que fala de amor sem final feliz, de sexo com urgência, de gozo. Que denuncia crueldades, que expõe perdas, que projeta despedidas. Que rompe com o instituído para as mulheres, que fala de experimentações, de cotidianos de dor, de recuos conscientes, de falhas. Nesse sentido, é uma proposta para muitas vozes, para muitas identidades. Um livro escrito para mostrar falas possíveis, e não para calar ou forçar ninguém. Um livro para mulheres loucas (e para homens loucos que se identificam com o ritmo de um feminino não dependente).

E quem são as mulheres loucas? As que amam com intensidade; as que fazem sexo se, como e quando querem — ou não fazem porque não querem; as que percebem e não aceitam desmandos e cabrestos, e se impõem contra eles; as que participam da luta diária por respeito e dignidade. As loucas gritam (mesmo que silêncios), apontam, contam, registram, oferecem, exigem, enfrentam, discutem, denunciam, desconstroem, desconvertem, (se) desnudam. Então, é isso. Louca é proposta — e não cartilha emblemática. Louca é lucidez. Louca é bom.

 

Fernando Andrade: Suas imagens são tochas acesas e prontas para iluminar, e não queimar conceitos, imagens. A força da tua palavra, ela vai ao ponto da cisma-dúvida, não é uma força que nucleariza espaços, os fecha, ela os separa para o leitor poder visualizar toda a veia semântica dos seus afetos ou das suas sínteses. É muito fácil (dês) estruturar pela destruição, mas sua poesia funciona quase como uma lente onde se vê com mais clareza tuas afecções.

Cinthia Kriemler:  Escrever é uma exposição. Não adianta achar que dá para se esconder atrás das metáforas e das entrelinhas. Sempre haverá (ainda mais entre os leitores regulares) quem leia os seus poemas, os seus textos arrancando deles as confissões camufladas no subliminar. O que não significa que haja uma leitura “certa” ou “errada”. O que existe são leitores mais ou menos afinados com a sensibilidade com que você escreveu um determinado poema ou texto. Se uma pessoa está sofrendo, ela vai compreender melhor as entrelinhas que falam de dor. Se ela está num instante muito feliz, existe a possibilidade de que, mesmo entendendo, não se sinta capturado pelo que leu. Os registros de sensibilidade em relação ao que está escrito dependem de identificação. As afinidades, como eu gosto de chamar, se criam ou se desfazem de acordo com os momentos das pessoas, com os momentos de cada leitora/leitor. Tanto na minha vida pessoal quanto na minha existência como escritora, eu não sou uma pessoa de timidezes. Sou de rompantes. De terremotos. Que causam fendas e rachaduras. Ponho o dedo na ferida. Porque, se há ferida, é melhor apertar pra tirar logo todo o sangue velho, e deixar brotar o sangue novo que vai renovar os tecidos. Não sou pelas camuflagens, pelos paliativos, pelas fugas. Se é pra doer, que doa logo, fundo, de uma vez. Sabe aquilo de tirar de uma vez o esparadrapo? Sou de extremos. Tenho muita dificuldade de parar no meio. Amo/odeio; choro/dou gargalhadas; esbravejo/agrado. É de mim. Eu sou em estado bruto. Alguns diriam que eu sou primária. Não acho que seja isso: sou pelos livramentos. E, por causa disso, já fui chamada de doida, afoita, ansiosa, temperamental, dramática, curiosa, teimosa, arrogante, chata, insuportável. Devo ser um pouco de cada uma dessas coisas. E meus textos refletem isso. Os meus poemas são resultado de observações e experiências. São reais na medida em que são escritos a partir de uma colheita de percepções do mundo real. Para mim, escrever passa, obrigatoriamente, pela desconstrução. A palavra é essa. E não destruição. Destruição, a meu ver, é uma tragédia, porque aniquila todas as possibilidades, inclusive a possibilidade da discussão, que eu considero a maneira mais válida de se chegar a alguma coisa boa. Destruição é ditadura. É alguém chegar e dizer “Eu não gosto do que você gosta e quem manda aqui sou eu.” Isso vale para a vida real e para a literatura. Talvez por isso essa lente de aumento que você cita, que aparentemente está voltada para os meus anseios, males, dores, mas que, na verdade, está voltada mesmo é para as questões que dizem respeito a muitas de nós, mulheres. A identificação com o leitor pode ou não acontecer.

 

Fernando Andrade: Quando você escreveu o romance Todos os abismos convidam para um mergulho, já tinha em construção o livro de poemas? Há um certo liame entre os dois principalmente com relação à dor como ela é traçada nos dois livros de forma muito sensorial, corpórea. Fale um pouco disso.

Cinthia Kriemler: Na época em que escrevi o meu romance, tinha escrito apenas uns 15 poemas dos 68 que estão no Exercício de leitura de mulheres loucas. Inclusive, porque eu jurava de pés juntos (até hoje não sei de onde vem essa expressão) que nunca publicaria um livro de poemas, porque eu sou da prosa (por paixão e vocação). Mas, como em várias outras ocasiões da minha vida, paguei a língua. Fui convivendo mais com a poesia, fui tomando gosto em ler e sentir poemas de gente famosa, de gestão não famosa. E dois ou três amigos começaram a insistir para que eu publicasse. Aí, decidi que faria. Que não fosse por outra coisa, para ter um registro em forma de livro. Quanto a essa ligação, pela dor, do meu romance Todos os abismos convidam para um mergulho com o Exercício de leitura de mulheres loucas, não foi proposital. Mas ela existe. A dor é um sentimento que sempre vai estar presente na minha escrita. Porque a dor está em todo canto. Sufocando, martirizando, torturando. Um corpo doente, machucado, agredido por uma surra, pela violência de um estupro, pela humilhação de um olhar de desdém, de deboche é um corpo que sente dor. A mente magoada, acuada pelos abusos que desqualificam e enfraquecem a força necessária para seguir adiante, ou ainda a mente minada por transtornos que levam à depressão é uma mente que está em dor. O amor mal sucedido, egoísta, não correspondido, inexistente é um amor que gera dor. A dor está na fome (em todas as fomes), na velhice, na opressão, na solidão. Está em quem sofre preconceitos, abandono, ameaças. Então, a dor é o centro nevrálgico. Que joga as pessoas numa invisibilidade não desejada, não pedida, não aceita. Dor é plural. A criança que é sodomizada pelo próprio pai e que se cala por medo. A prostituta que serve para trepar, mas que não serve para ficar no mesmo ambiente que as mulheres recatadas e do lar. A mulher ou o homem que são medidos pela cor da sua pele. Os homossexuais, os transexuais, os bissexuais, os travestis, os queers, os intersexuais que apanham e morrem vítimas de um ódio insano. As gordas e os gordos, discriminados, humilhados e . Os deficientes físicos ou mentais, alijados do convívio social (muitas vezes pela própria família). Dor. Dor. Dor. Saudade é dor. Medo é dor. Morte é dor. Desprezo é dor. Covardia é dor. Perda é dor. Doença é dor. Rejeição é dor. Miséria é dor. A dor está esparramada por aí. É isso que eu enxergo antes de escrever. É disso que eu falo. Da dor dos invisíveis. Da dor que surge, se alastra e sufoca na clandestinidade do anonimato. Da dor reprimida. Já reparou como as pessoas reagem quando algum desses invisíveis grita “Chega!”? Elas dizem: “Que escarcéu! Que exposição! Que barraco! Que sem noção! Que carência! Que vontade de aparecer! Que drama!”. Há um pacto social perversor de se jogar a dor para debaixo do tapete. Porque a dor incomoda. É feia. Funga. Tem olhos vermelhos. Enfim, o que eu quero tentar mostrar com meus textos e poemas é que doer tem de ser verbo explícito, verbo-denúncia. Por isso tudo é que não cabem flores, laços e babados na minha escrita. Porque descrever o mundo como perfeito é alienação, fuga, maldade ou indício de que se está do lado opressor. Não se trata de ser amarga ou pessimista. Sou, como todo o mundo, feliz, infeliz, triste, alegre. Mas acredito que é preciso perguntar: “E o resto do mundo, além do meu umbigo, como está vivendo?” Não se trata apenas de defender bandeiras, mas de trazer para a luz o que vive no subsolo. A omissão é uma das maiores atrocidades que existem.

 

Fernando Andrade:  Há um interessante jogo de elemento de sondar o masculino e suas ruínas. Mas ao mesmo tempo tua voz poética busca o masculino de forma bem dionisíaca. Com é esta relação entre pertencimento e crítica ao homem como ele se apresenta?

Cinthia Kriemler: Eu flerto com tudo (adoro usar esse verbo, flertar). Transito bem em qualquer universo. E sou flexível. Mas tenho opiniões inegociáveis. Uma delas é de que ser mulher não é um jogo de cena. Eu sou, antes de tudo, uma feminista. Em aprendizado. Optei por ser. Nasci de um matriarcado, e isso já foi uma boa base. Mas cresci num mundo machista. Minha geração não foi a das mulheres submissas, mas foi a das mulheres hostilizadas por viverem sua liberdade. E não gostei. Nunca aceitei as disparidades causadas pelo machismo. Machismo que vem de homens e, pior, de muitas mulheres. Sou contra qualquer um ou qualquer uma que tente se impor a mim, que se ache superior a mim, que não me respeite (corpo, mente, espírito), que queira me subjugar. Mas dentro de um contexto de igualdade e de respeito, cujas regras sejam acordados sem imposições, é muito bom conviver com ambos os universos, o feminino e o masculino. As minhas relações profissionais, familiares, de amizade, amorosas se dão dentro desse tipo de esfera. É possível e desejável criticar e conviver, corrigir e conviver. Pertencimento, sim, mas a origem comum que dá lugar a esse sentimento deve ser a igualdade. E a igualdade passa pela discussão, pelo aparar de arestas. E passa pelo “desde que”, que é o balizador das possibilidades e impossibilidades dentro das relações. O masculino está presente, sim, na minha poesia. Como objeto de curiosidade, de desejo, de cumplicidade. Mas nunca de dominação.

 

Fernando Andrade: A loucura tem o poder de dessacralizar muitos totens no seu livro. Modelos coercitivos, padrões religiosos, Como você pensou cada célula de poema para ter esta cognição libertária?

Cinthia Kriemler: Pensei no rompimento das amarras, das algemas a que nós, mulheres, fomos e somos submetidas. Tantas amarras. A virgindade como garantia de aceitação pelos machos, pela família, pela sociedade. A submissão obtida por meio do cerceamento do acesso ao mercado de trabalho ou às camadas mais altas desse mercado. A posse do próprio corpo apenas para procriar, mas sem direito a decidir mais nada. A tirania da estética para agradar aos considerados “os melhores machos”. A obediência como forma de não questionamento da suposta autoridade masculina. A inteligência sufocada por estereótipos estéticos. A alienação em relação às questões decididas como sendo do universo masculino (negócios, aventuras, trabalho, prazer). O aprendizado da dissimulação como forma de obtenção de presentes e agrados. A anulação do feminino pela força (física ou i-moral) do masculino. A partir da ideia de desconstrução dessa mulher-boneca, eu fui buscando temas variados, como (des)amor, morte, abandono, violência, rupturas, desejos. Mas o livro também traz poemas que falam da
imoralidade das guerras, do sofrimento das crianças (sempre as vítimas mais trágicas), do saldo das ditaduras, das máscaras de todos nós. Há abordagens objetivas e abordagens afetivas no exercício de leitura do mundo pelas mulheres loucas.

Fernando Andrade: Como foi para você o processo de escrita do romance Todos os abismos convidam para um
mergulho?

Cinthia Kriemler: Difícil, prazeroso, intenso, emocionante. Muita pesquisa para decidir o perfil da protagonista. Muita pesquisa para não cometer inverossimilhanças. Muita empatia e muita simpatia pelas anti-heroínas. Porque eu adoro anti-heroínas. A mulher que falha, erra, sofre, cai, mas que insiste, se refaz, fica de pé, toma decisões e segue adiante. A mulher que tem vícios, que é livre de rótulos bem comportados, que pode fugir do que é considerado “aceitável” e que, decididamente, faz o que quer, arcando com todas as consequências. Beatriz, a minha protagonista, é tudo o que eu queria que ela fosse: complicada, pesada, dura, machucada, deprimida, independente, responsável pelo que causa. Aquela que alguns leitores consideram, num primeiro momento, como sendo uma mulher antipática, cruel, fria, egoísta, doida, libertina, errada. Maz Beatriz é mulher para um segundo olhar. Quando então o leitor pode conhecê-la, e até amá-la, se conseguir olhar para ela a partir da sua própria ótica: uma mulher que se pune com a vida, porque a morte é pouco demais.

                                   

                                     

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Fernando Andrade – Crítico literário, poeta e escritor, autor de 4 livros de poesia. O seu  livro mais recente é “Perpetuação da espécie”, editora Penalux, 2018.

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