Fernando Andrade entrevista o escritor Rodrigo Suzuki Cintra sobre o livro ‘O caderno de dispositivos de M. Lovet’

Rodrigo Suzuki  scaled - Fernando Andrade entrevista o escritor Rodrigo Suzuki Cintra sobre o livro 'O caderno de dispositivos de M. Lovet'

O CADERNO DE DISPOSITIVOS M. LOVET

 
 
 
 
 

Fernando Andrade –  M. Lovet nos seus poemas narrativos é um observador distante ou um personagem (fala disso). Seu perfil parece ser quase um estudo científico das medições de avaliações quase matemáticas e geométricas das emoções humanas olhadas por uma espécie de lente muito especulativa. Comente.

Rodrigo Suzuki Cintra  – M. Lovet é um alter ego. Ele pensa a própria existência em seus poemas. Curiosamente, ele está presente em todos os poemas do livro. Então, mesmo ao falar sobre si mesmo enquanto um personagem, não está ocorrendo uma narração tradicional, mas sim, o que eu chamaria de um redobro de consciência. A memória e a linguagem, no entanto, são conceitos que nos pregam peças. Quem garante que o modo como ele descreve o sentimento de paixão, por exemplo, a ser medido pelo dispositivo do amperímetro, no poema “O Amperímetro da Paixão”, é um modo absolutamente condizente com sua memória? A linguagem utilizada, também, pode estar longe de uma consciência adequada a sua verdadeira condição existencial.
O truque do livro, acredito, é que Lovet se propõe a descrever maquinários, os dispositivos, que medem os sentimentos. Só que ele não consegue escapar de dar voz tanto ao próprio modo como concebe os sentimentos, como de lembrar e contar os acontecimentos de sua própria vida.
Os dispositivos, os sentimentos e a memória de Lovet se misturam nas tentativas poéticas de pensar a si mesmo. Se tive que inventar um passado que não era meu para a imaginar Lovet, idealizar suas obsessões, inclusive formais, obviamente, também não consegui me livrar de minhas próprias limitações estéticas, meu modo de compreender os sentimentos, minhas memórias eletivas e as inconscientes. Mas, acho que isso não retira força ao personagem idealizado, pelo contrário, penso que fornece audácia.
Além do mais, para dar conta da pergunta, é preciso perceber que esse M. Lovet se interessa muito pela ciência. Os trinta dispositivos da primeira seção do livro existem no mundo real. Tive que pesquisar muito isso e entender como eles funcionam para depois adicionar a ideia de que “mediriam” sentimentos. Depois, descrever lembranças de M. Lovet, pensadas como um personagem a pensar solto, ou um arquiteto de mentiras da memória.
Se meu primeiro livro de poemas, Geometrias de Cosmos, tinha esse título, essa obsessão dos cálculos, mas não era obra estritamente para matemáticos, O Caderno de Dispositivos de M. Lovet, de apelo altamente científico, não é obra apenas para a leitura de quem gosta de física.

Fernando Andrade – Sua voz narrativa me lembrou o autor Italo Calvino, principalmente em Cidades Invisíveis, onde uma voz muito  atenta e cuidadosa monta quase um espaço mental ou sentimental, da fisicalidade do corpo, e suas qualidades desejo, memória, simbologia. Relacione ou não esta comparação.

Rodrigo Suzuki Cintra – A comparação que a pergunta propõe me agrada muito. O Caderno de Dispositivos de M. Lovet é o terceiro volume de uma série intitulada Trilogia da Invisibilidade. O primeiro volume, Geometrias de Cosmos, é um livro de poemas que publiquei em 2019. O segundo, A Galeria Invisível, é um livro de ekphrasis meio malucas e está disponível na internet, em meu site pessoal. Cidades Invisíveis de Italo Calvino é uma obra formidável e foi, sem dúvida, uma das referências literárias que mais me influenciou na redação da trilogia.
Calvino nos leva a viajar por suas cidades de uma maneira muito imaginativa.
A força da pura descrição meticulosa se sobrepõe a impossibilidade factual daqueles espaços que desenha. Acho que, no Caderno de Dispositivos de M. Lovet, tentei algo muito semelhante. Os dispositivos que apresento são, obviamente, improváveis e altamente estranhos. Por exemplo, o poema “A Clepsidra do Arrependimento” apresenta esse instrumento composto de água a medir o sentimento de olhar para trás e não aceitar o modo como se resolveu uma questão. Quem já viu uma clepsidra, no entanto, e sabe como é o seu funcionamento, perceberá, se der asas a imaginação, o vai e vem do “líquido” na estrutura. Isso é algo para a pura imaginação solta. E é isso que tento propor ao leitor. Eu também, em todos os cinquenta poemas do livro, descrevo meus dispositivos. Às vezes, de forma mais descritiva, enumerando os elementos que os compõem, outras, explicando o seu modus operandi.
Porém, existe algo na escrita de Calvino do qual me distancio. Em seu livro Seis Propostas para o Próximo Milênio, um livro de conferências, a primeira proposta que ele ensaia é a da “leveza”. Ele argumenta que em toda a sua obra tentou “retirar o peso”, dar leveza ao escrito. E isso é, ao que me parece, uma interpretação do autor sobre sua própria obra absurdamente perfeita. Tomemos os títulos de alguns de seus livros só para entender melhor isso: O Cavaleiro Inexistente, O Visconde partido ao Meio, O Barão nas Árvores, As Cosmicômicas. Eu vejo a tentativa de leveza até mesmo em Um General na Biblioteca. As Cidades Invisíves, então, têm essa característica também, essa qualidade. O meu Caderno de Dispositivos de M. Lovet, no entanto, é um livro que mede sentimentos. Paixão, ódio, culpa, remorso. Finais de romance, mentiras, ideias fixas. Meu livro é “pesado”, se pensarmos assim.
Não que não possua sensibilidade, longe disso, mas que tem uma temática de densidade. Para mim, os sentimentos humanos são confusos, difíceis, paradoxais, enfim, eu não consigo escrever com a habilidade da leveza de Calvino. E, se as Cidades Invisíveis dele me foram altamente úteis para pensar na trilogia, eu proponho uma obra autoral diferente, principalmente devido a temática. As “paixões” como se diz no vocabulário técnico da filosofia.

Fernando Andrade – A  arte parece ser seu foco de estudo neste livro. Mas há certamente através da sua linguagem uma preocupação científica talvez de experimentação de testar ou não o próprio ato criativo, geracional, do pensamento, da abstração.  Comente.

Rodrigo Suzuki Cintra – O título do livro precisa ser levado em consideração nesse caso. Antes de tudo, a proposta inicial é de que ele é um “caderno” desse personagem fictício, o M. Lovet. Enquanto um caderno, a ideia é a de que ele é um espaço de esboços, de experimentações, de rascunhos, de testes para formas. Assim, a experiência do personagem de pensar a própria existência, por meio dos dispositivos que se sucedem, é uma aventura de uma consciência pelas arquiteturas da elaboração da linguagem. O processo criativo dos poemas se mostra um lugar não apenas para a denúncia da memória, para a articulação do passado de M. Lovet, para o cálculo de seus sentimentos mais profundos, mas, também, por meio das propostas formais que ele imagina, é a resposta poética de uma subjetividade de um “autor” que se propõe como artista. Tudo se mostra mais peculiar porque esse personagem é, como imaginei, um crítico de arte que está escrevendo seu primeiro livro de poemas. A arte, então, não poderia deixar de estar presente em suas experiências poéticas. A segunda seção do livro se intitula “Dispositivos de Sonho enquanto Arte”. Ali, ele explora imagens de artistas como Calder, Dalí, Duchamp, Magritte e Man Ray. Tenta dar conta poeticamente dos “dispositivos” que encontra nesses artistas. Já na terceira seção do livro, “Dispositivos de Metafísica Avançada”, existe uma preocupação em descrever os dispositivos hipotéticos como maquinários de existência real. Então, o modo como ele descreve essas estruturas não pode ser pensado separadamente da própria formatação desses poemas, que são, se bem consegui realizar, prosas poéticas.

Fernando Andrade – Seu livro poderia ser um romance, um livro de contos, ou mesmo um livro poético ensaístico. Me fale sobre este hibridismo de gêneros. Explane.

Rodrigo Suzuki Cintra – O Caderno é composto de vários gêneros. A primeira seção é feita de sonetos no estilo Lovetiano de pensar: três quartetos e um dístico. A segunda seção possui poemas de apelo mais imagético. E a última seção é composta de prosa poética. Um dos dispositivos escondidos propositalmente no livro, que aqui confesso, é o prefácio. Com o título de “Sobre a Arte de Crítico”, o texto interpreta o Caderno e teria sido escrito por um certo crítico literário chamado Tevol Hemmeh. O artifício é que o tal Tevol Hemmeh não passa do próprio M. Lovet escrevendo em prosa sobre si mesmo. Se repararmos, é o seu próprio nome ao contrário. Tudo se passa como se eu, enquanto autor, idealizasse um outro de mim, M. Lovet, e ele, por sua vez, na escrita em prosa do prefácio, também idealiza um outro de si.

A ideia central, nesse sentido, é que uma personagem idealizada também é um “dispositivo”, principalmente se compreendermos esse conceito a partir da referência filosófica de um Foucault.

O hibridismo de gêneros, então, pode vir a contribuir ainda mais para a ideia de que se trata mais de um “caderno” e, menos, de um “livro”.
Experimentações, tentativas, esboços. Acredito, profundamente, que a verdadeira poesia está em um compromisso com a linguagem de constante investigação. A gramática normativa, por exemplo, me proibiria de escrever os “Dispositivos de Metafísica Avançada” do jeito que fiz. Mas, é claro, se eu fosse obedecer fielmente certos regramentos, eu não escreveria poesia!

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